Before and After Cyber

Artigo sobre as origens da cibercultura, redigido no âmbito do projecto «Tendências da Cultura das Redes em Portugal» (POCTI/COM/34436/99).

Publicado na série online Working Papers, do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens.

Artigo redigido no âmbito do projecto «Tendências da Cultura das Redes em Portugal» (POCTI/COM/34436/99).

Publicado na série online Working Papers, do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens.

 

Ao averiguar sobre as origens da cibercultura – ou, para ser mais concreto, de todo o conjunto de práticas que se convencionou associar a esse termo –, é tão necessário retraçar a ligação ao aglomerado de ciências e engenharias que permitiram criar infra-estruturas como a Internet (os computadores, a possibilidade de ligá-los em rede, as interfaces gráficas, etc.) quanto a todo um imaginário que, extrapolando se não mesmo especulando1 a partir do pouco que havia sido concretizado na viragem para a segunda metade do século XX, criou toda uma apetência para adoptar (e talvez influenciar) as inovações que entretanto se foram sucedendo. É certo que muitas dessas inovações ultrapassaram ou se desviaram das previsões mais eufóricas – por exemplo, dificilmente se imaginaria, quando foram criadas as primeiras aplicações de correio electrónico, que não só o seu uso seria tão universal como também que serviria para enviar os mais diversos tipos de documentos. É certo também que outras aspirações ficaram – até ver – aquém de expectativas então consideradas modestas: a ilustração talvez mais flagrante é o facto de terem passado mais de cinquenta anos sobre as primeiras promessas de inteligência artificial e elas continuarem por cumprir apesar do brutal aumento nas capacidades de computação. Um outro é o do aproveitamento comercial (e consequente «democratização») da exploração espacial, como no sonho por vezes referido da criação de hotéis em estações espaciais. Mas em todo o caso, não pode ser ignorada a importância desse universo, paralelo ao da realidade concreta mas aparentado das reflexões ensaísticas de autores-cientistas como Alan Turing, Norbert Wiener, Wernher von Braun ou Arthur C. Clarke2, que é o da ficção.

Muito desse imaginário antecede em mais de um século o período dos últimos cinquenta anos em que desejamos por ora concentrar-nos. Frankenstein, por muitos considerada a primeira novela de ficção científica digna desse nome (nome de que, aliás, o género continuaria a carecer por longo tempo), retrata já – o ano era 1818 – o sonho ou o pesadelo de uma criação à imagem do homem. RUR (Rosumovi Umělí Robotii, ou Rossum’s Universal Robots, no mais conhecido título em inglês), do checo Karel Čapek, ousa ir ainda mais longe nessa pulsão de criar, dissociando a «criatura» de qualquer substrato orgânico: os robots, palavra que se internacionaliza com esta novela, são artefactos puramente mecânicos, o que não impede que adquiram atributos –- como a consciência –- considerados exclusivos do humano3. O robot será de resto, ao longo daquilo que se convencionou chamar a «golden age» da ficção científica4, um dos ícones mais fortes do género5, só encontrando «adversário» à altura na nave espacial e no alien… e talvez, se se tiver em conta a desvantagem com que contou um late starter, também o computador dotado de inteligência6.

Desses ícones, dois remetem para aquele que foi o grande sonho americano ao longo das décadas de 50 e 60, particularmente depois do influente discurso de Kennedy a 25 de Maio de 1961, onde estabelecia a corrida espacial como prioridade e a chegada à lua como objectivo a atingir — como de facto ocorreu — até ao final da década7. Contudo, como diria o ex-académico e editor de literatura de ficção científica David Hartwell, no título de um dos ensaios presentes na colectânea Age of Wonders, publicada em 1984, «when it comes true, it’s no fun anymore»8: depois do auge que foi a missão Apolo XI, e apesar de os sinais terem tardado quase duas décadas a tornar-se evidentes para todos9, o imaginário dos leitores de ficção científica deixou progressivamente de ser esse «espaço exterior». Pode por isso dizer-se que os interesses se voltam — também pouco a pouco — para um «espaço interior».

Não estavam então — pensamos ainda nos anos 50 e 60 — criadas as condições para que tal fosse imaginado por uma massa de leitores, mas também os dois ícones restantes (o robot e o computador) tiveram de sofrer uma metamorfose para que pudessem resistir ao processo inverso, o da erosão de expectativas. Em 1950, no artigo «Computing Machinery and Intelligence», Alan Turing augurava para daí a meio século a possibilidade de os computadores atingirem metade da capacidade de memória dum humano — estimada por ele entre 1010 a 1015 bits (Turing, 1950, p. 61) — , bem como uma velocidade de processamento igual ou superior, e de portanto serem aprovados no seu teste ou «jogo da imitação»10. Pequenos mas igualmente pouco modestos ajustes foram sendo feitos por quase todos aqueles que reclamaram a herança de Turing ao longo dos anos que se seguiram, como o relembram Hubert e Stuart Dreyfus, ainda hoje os nomes mais associados à crítica da Inteligência Artificial enquanto programa de investigação11. E o que é válido para o computador tem também de sê-lo para um artefacto que, dele derivado, representa um acréscimo em complexidade e em exigências de miniaturização – o robot12.

Pode então perguntar-se de que forma a ciência – do lado do «real» – e a ficção científica — do lado do «imaginário» — se confrontaram com esta potencial desilusão. Para ambas a resposta é uma só, a ponto de ser virtualmente impossível atribuir a qualquer delas a primazia. Se nos concentrarmos nalguns dos títulos ainda hoje sonantes no género da SF, Robert Heinlein publicou em 1942 «Waldo», um conto onde é explorada a possibilidade de manipulação à distância, e apenas dois anos depois, Catherine L. Moore contava a história de uma bailarina que sofre um acidente mas recupera a mobilidade ao tornar-se num híbrido entre humano e máquina13. Qualquer destes dois títulos antecede o sonante ano de 1948, data em que são publicadas duas obras maiores da teoria da informação — o artigo «The Mathematical Theory of Communication», de Claude E. Shannon (que no ano seguinte seria publicado em livro, acrescido duma introdução de Warren Weaver), e Cybernetics, or Control and Communication in the Animal and the Machine, de Norbert Wiener — sem as quais nunca passariam de delírios as situações imaginadas por qualquer dos autores de ficção científica14. E como não mencionar «Scanners Live in Vain» conto de Cordwainer Smith de 1950 que, descontados os elementos flagrantemente fantasiosos15, quase parece antecipar uma outra seminal proposta — esta datada de 1960 — de Manfred E. Clynes and Nathan S. Kline, que, mau grado ter em vista a exploração espacial, inauguraria um termo que desde então se tornou incontornável: o de cyborg.

Clynes e Kline, representantes do lado mais «pesado» daquilo a que podemos chamar as «tecnologias da interface humano-máquina», seriam em breve acompanhados por uma hoste de investigadores que se dedicaram ao seu lado mais «leve». Como que em resposta aos frutos da fértil imaginação de J. C. R. Licklider (para não falar em Vannevar Bush), Douglas Engelbart inventou o rato em 1963 e cinco anos mais tarde demonstraria as potencialidades do ecrã gráfico, e Ivan Sutherland mostrou, com o programa Sketchpad e com a light-pen, como bits e pixels poderiam ser a via para uma interacção com o utilizador humano. Os resultados das suas pesquisas neste campo manter-se-iam por algum tempo fora do alcance (e das imaginações) do público em geral – até à explosão dos computadores pessoais, e nesta, até à banalização das interfaces WIMP («Windows, Icons, Menus, Pointer») como a dos Macintosh –, mas não dos escritores (e leitores) de ficção científica, que – conhecendo-as ou não, pois o que aqui conta é uma apetência geral do imaginário colectivo, que não obriga que se esteja ao corrente da investigação de ponta – começavam então a sintonizar-se com esta nova tendência em títulos como Nova, de Samuel R. Delany, de 1968, «The Girl who was Plugged in» de James Tiptree Jr., de 1973, novella (que adiante merecerá um tratamento à parte) cujo título é suficientemente auto-explicativo acerca do seu conteúdo, a simbiose entre humanos e máquinas, ou ainda When H.A.R.L.I.E. Was One de David Gerrold, de 1972, e The Shockwave Rider de John Brunner, publicado em 1975, onde, respectivamente, foram cunhados o termos «vírus» (informático), programa que destrói ou neutraliza outros programas ou dados, e «worm», programa que cria cópias de si mesmo à medida que progride numa rede de computadores. (Note-se, de resto, que as acepções hoje em dia correntes pouco ou nada se distanciam das que foram propostas nestas novelas.)

Vale a pena determo-nos neste outro período da ficção científica. A golden age e o género então predominante da space opera — na prática um western no espaço — já vão longe. A fase que se seguiu, profundamente importante no que respeita à maturidade literária do género, pode, seguindo uma convenção por vezes aceite mas que não lhe faz justiça, ser cunhada como silver age: nesta16, os magazines (e portanto a ficção mais curta) cedem pouco a pouco o lugar ao formato livro (i. e., à novela), e toda uma nova geração de escritores virá tentar renovar o género e os seus temas e topoi. A renovação padece contudo de dois entraves. Nos casos em que houve ímpeto suficiente para gerar um movimento, este foi demasiado «literarizante» – falamos essencialmente da chamada New Wave, quer na sua verdadeira origem britânica quer na variante americana. Para além disso, e para marcar a distância relativamente à época anterior, a New Wave foge às temáticas (e ao esperado rigor) da hard SF, preterindo-a em favor de tratamentos mais sociais e psicológicos (da soft SF) e também mais aparentados com o género-irmão da fantasy17. J. G. Ballard — pelo lado britânico — e Thomas Disch — pelo americano, mas residindo por largo tempo no Reino Unido — são dois dos nomes que podem ser destacados deste movimento, e no caso do primeiro não é de mais recordar a novela Crash, onde as ligações entre homem e máquina são exploradas da forma mais perturbadora (ou ofensiva, consoante as sensibilidades). O que resta são os casos isolados, os mavericks que, sem perderem a ligação ao campo literário algo fechado que é o género, possuem neste um estatuto algo marginal (com as vantagens e desvantagens que tal acarreta). Philip K. Dick é de entre eles possivelmente quem mais resistiu à erosão do tempo18, mas os já mencionados Cordwainer Smith (com uma curtíssima carreira que terminou em 1966) e John Brunner servem também a esta classificação.

Os escritores que emergem na década de 70 vão ter, de modo geral, uma atitude mais eclética relativamente aos seus predecessores (e talvez mais pacífica, na medida em que procura ser conciliadora), o que não impede que a renovação do género se faça também por actos mais radicais. Ainda que contasse desde há muito com uma presença – ainda que modesta – do sexo feminino (C. L. Moore, Leigh Brackett19, Judith Merrill), só então as novas escritoras se assumem como um movimento: a discrição do feminino dá lugar à irrupção do feminismo de Ursula K. LeGuin (de todas as autoras da lista que se segue, a que melhor representa a ponte com o período anterior), Margaret Atwood, Vonda McIntyre, Sheri S. Tepper, Octavia Butler, C. J. Cherryh, e, na guarda avançada do movimento, Joanna Russ, que tem como obra mais marcante The Female Man, de 1975.

Muitas destas autoras são relevantes para a nossa discussão, pois é para elas que vão os agradecimentos de Donna Haraway no seu «Manifesto for Cyborgs», texto onde o próprio conceito de cyborg — como indicado acima, vindo da mais pura hard science e portanto afim da mais pura hard SF — é objecto de uma revolucionária reformulação20, tornando-se o seu significado tão amplo que passa a caracterizar não somente (nem primariamente) a ligação física entre um ser humano e um maquinismo para ser uma forma de descrever aquilo que todos somos na actual configuração técnico-económica que se sucedeu ao capitalismo clássico, e a que Haraway chama a «informática da dominação». Todavia, seria uma outra mulher, sob um pseudónimo masculino e voluntariamente afastada de qualquer movimento ou polémica em torno do feminismo21 mas ainda assim também na lista de agradecimentos de Haraway, quem relembraria as origens do termo cyborg ao mesmo tempo que lhe atribuía uma configuração muito próxima da que viria entretanto a tornar-se dominante: a escritora era James Tiptree, Jr. (Alice Sheldon), o conto «The Girl who was Plugged in».

Ecoando «No Woman Born»22, publicado três décadas antes, mas modificando uma pequena premissa (que viria no entanto a ser determinante para o futuro do género), «The Girl who was Plugged in» conta a história de uma adolescente que, por motivos que agora é escusado discutir, passa a ter a sua consciência localizada num outro corpo muito mais perfeito. O cérebro continua «alojado» no seu corpo original mas a acção e a sensação à distância são tão plenas que é como se o tivesse abandonado, como se – ecoando perversamente um lema gnóstico a que regressaremos – pudesse abandonar a «prisão de carne» que era esse outro corpo. Como remata o narrador nas últimas linhas da narrativa, «Believe it zombie. […] You can stop sweating. There’s a great future out there.» (Tiptree Jr., 1973, p. 539): zombie, porque prisioneiro do seu corpo, é o leitor; livres são aqueles a quem foi concedido transcenderem essa limitação e que adquiriram o dom da ubiquidade, ocupando dois locais e dois corpos23.

Em «The Girl who was Plugged in» a ligação está contudo ainda limitada a algo físico24, mesmo que mais permanente e mais envolvente do que a de «Waldo» (cujo protagonista, com esse nome, apenas manipulava objectos à distância, não perdendo a consciência do seu local de origem) e mais dualista do que «No Woman Born» (que na prática é apenas um «transplante», ainda que definitivo, para outro corpo). Todavia, nos anos 80, os desenvolvimentos na área da informática (em particular na das interfaces humano-computador) vão despertar a imaginação de um conjunto de escritores – melhor será chamar-lhes um «movimento» – que procuram suprimir à ligação até esse último vestígio de matéria. Se o cyborg original era uma ligação – temporária ou permanente – de carne e metal, e se o cyborg de Haraway é uma ligação indissolúvel de uma força (humana) de trabalho aos meios (tecnológicos e particularmente informáticos) de produção25, este outro liga a mente a um universo tanto ou mais imaterial, ou melhor, a um universo constituído apenas pelos dados de um programa informático. A protagonista de «The Girl who was Plugged in» ligava-se a um outro corpo e com ele acedia a um outro local, mas era ainda o mesmo tipo de espaço; como ela, as personagens retratadas pelos cyberpunks deixam também para trás o corpo original, mas não o trocam por outro, e sim por não mais do que uma representação (ainda que plena tanto na ilusão motora quanto na sensorial) dum espaço que também não o é verdadeiramente: o ciberespaço.

A citação da novela de William Gibson, Neuromancer, onde é introduzido o conceito de ciberespaço26 é por demais conhecida e repetida, pelo que dispensaremos enunciá-la. Será mais relevante indagar acerca dos desenvolvimentos no campo da informática que autorizaram semelhante tipo de extrapolação27, a que imaginava como possibilidade futura a criação de uma realidade alternativa puramente constituída por informação binária. Não é difícil encontrar pelo menos um esboço de resposta. A infra-estrutura da rede de redes que é a Internet existia já em versão primitiva, bem como algumas das suas funcionalidades e protocolos mais básicos, como o correio electrónico e a Telnet; os BBS – «Bulletin Board Systems» – tinham surgido pouco antes, no final da década de 70, e o mesmo pode dizer-se das shells gráficas (ou GUI, de «Graphical User Interfaces») de alguns sistemas operativos. Ainda nenhuma destas inovações havia chegado ao grande público — que de resto quase nem tinha acesso a computadores, mesmo exceptuados os casos do Commodore 64 e do Apple II (nos Estados Unidos) e ainda do ZX Spectrum (na Europa, onde também o Commodore 64 teve alguma penetração) — , mas começava progressivamente a criar-se uma apetência para o seu uso por via dos videojogos, com algumas promessas de que outro tipo de aplicações mais «sérias», como o processamento de texto, também em breve beneficiaria de uso generalizado.

Em face dessa realidade — da qual devemos reforçar o papel dos videojogos, que combinam a componente gráfica com um quase visceral apelo à coordenação «olho-mão» — , das antecipações (por vezes demasiado eufóricas, mas de modo geral realistas) de uma verdadeira democratização no uso dos computadores, e de todo um imaginário herdado ao longo de cerca de meio século de ficção científica em que a interacção com algum tipo de máquinas se torna análoga da interacção entre humanos, a fusão de todos estes elementos numa espécie de upgrade desse imaginário (noutras palavras, a sua «virtualização» ou «digitalização») era praticamente inevitável. Bastava que os precursores certos fossem combinados a esta mistura já de si explosiva. Alguns já foram ocorrendo ao longo da nossa argumentação; outros são mencionados por Bruce Sterling no prefácio a Mirrorshades:

«the cyberpunks treasure a special fondness for SF’s native visionaries: the bubbling inventiveness of Philip José Farmer; the brio of John Varley, the reality games of Philip K. Dick; the soaring, skipping beatnik tech of Alfred Bester. With a special admiration for a writer whose integration of technology and literature stands unsurpassed: Thomas Pynchon.» (Sterling, 1986, citado a partir de fonte online)

 

Destes destacamos, pelo pioneirismo que lhes deve ser reconhecido na criação de simulacros de realidade tão perfeitos que a própria distinção entre verdadeiro (i. e., natural) e falso (i. e., artificial) se torna problemática, os dois Philip da lista: Philip José Farmer, autor da série de novelas (e alguns contos) «Riverworld»28, um mundo em que toda a humanidade alguma vez existente é ressuscitada (ou recriada artificialmente, pois o interesse está na dúbia oscilação entre a explicação teológica e a racionalista), e Philip K. Dick, em particular na sua obra Ubik (Dick, 1969), uma novela onde os indivíduos são temporariamente resgatados à morte se colocados de imediato em «coldpacs» onde permanecem numa espécie de semi-vida em que, descobrimo-lo ao longo da narrativa, se pode contudo ter a ilusão de continuar a habitar o mundo material. Ou ainda em A Maze of Death (Dick, 1970), que retrata uma ilusão colectiva e voluntária gerada por computador, que na novela vem a descobrir-se ser apenas a forma de um grupo de astronautas ocupar o tempo numa viagem que poderá não ter destino29.

O acto de jack-in da personagem Case de Neuromancer é o equivalente da entrada num desses mundos artificiais. A entrada é voluntária, o que diferencia esta novela dos casos mais comuns em Philip K. Dick (apesar de A Maze of Death, mas mesmo aí as personagens esquecem-no assim que entram na realidade alternativa). A verdadeira inovação de peso consiste contudo no facto de a «substância» desse mundo, que é gerada digitalmente, possuir uma realidade própria do digital: não é uma cópia da realidade, é uma outra realidade, «a graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in the human system» (Gibson, 1984, p. 67). E para além destas diferenças de superfície, uma outra que reside na profundidade dos pressupostos éticos de algum cyberpunk e muito possivelmente também de muitos dos seus leitores mais fiéis: um desprezo pela carne, pela fisicalidade, quase o oposto daquilo que transpira da novella de James Tiptree, Jr. Em Neuromancer, há pelo menos duas ocasiões em que esse desdém é explicitado. Logo no início, quando Case é envenenado com uma micotoxina para que aceite a missão que lhe será proposta, aquilo que mais teme não é tanto o efeito deste veneno quanto o facto de sentir de todo alguma coisa:

«For Case, who’d lived for the bodiless exultation of cyberspace, it was the Fall. In the bars he’d frequented as a cowboy hotshot, the elite stance involved a certain relaxed contempt for the flesh. The body was meat. Case fell into the prison of his own flesh.» (Gibson, 1984, p. 12)

 

A outra surge no final, em perfeita simetria com a anterior – inclusive pela sua conotação positiva, i. e., de sentido contrário –, quando Wintermute, a «inteligência artificial», se transforma na «matriz»:

«“I’m not Wintermute now.”
“So what are you.” He drank from the flask, feeling nothing.
“I’m the matrix, Case.”
Case laughed. “Where’s that get you?”
“Nowhere. Everywhere. I’m the sum total of the works, the whole show.”
[…]
“So what’s the score? How are things different? You running the world now? You God?”» (Gibson, 1984, pp. 315-316)

 

Exactamente 15 anos depois, tendo Neuromancer sido totalmente digerido como texto-fetiche da cibercultura, o filme The Matrix inverte as premissas da novela de Gibson: a matriz é agora o mal, o regresso à carne e à «realidade real», por dura e insípida que se revele, o único objectivo a buscar. Mas a oposição não faz mais do que esconder uma profunda afinidade entre ambas as perspectivas. A essa afinidade chama a filosofia dualismo. Não é já um dualismo que hoje chamaríamos ingénuo, apesar de ter sido Descartes o seu proponente30, pois conceitos como o de «alma» foram devidamente adaptados a (ou ocultados por) terminologias e quadros conceptuais consistentes com o state of the art da ciência; é todavia – e ainda – um dualismo.

É-o, por exemplo, quando pressupõe que, como a escada de Wittgenstein, o corpo pode ser posto de parte assim que tenha dado um suficiente contributo para a aprendizagem do mundo. Como que prevendo as críticas dos Dreyfus duas décadas depois, recordemos que logo no seu artigo de 1950, «Computing Machinery and Intelligence», Alan Turing afirmava que, em vez de se produzir um computador inteligente, seria preferível começar com uma tábua quase rasa31 e deixar que este fosse interagindo com o mundo de forma a acumular factos e relações entre factos até possuir uma base de conhecimentos suficientemente vasta e eficaz32. Invertendo o raciocínio, ou
tão-só propondo uma aceleração e uma simplificação do processo, Hans Moravec alegou, numa data bastante mais recente (Moravec, 1988), a possibilidade de transferir a consciência de um ser humano para um meio
distinto do seu cérebro, presumivelmente um meio digital33. A inteligência estaria portanto assegurada — e, para além desta, também algo muito mais fugidio, a personalidade que faz de cada um de nós um ser único34. Ora, como acreditar em tal possibilidade se não se pressupuser uma qualquer forma de dualismo, isto é, de separação entre algo exclusivamente material (e, por assim dizer, maquínico) e algo que, mesmo necessitando de um suporte material35, é indiferente à substância de que este é constituído, pois emerge de invariantes na estrutura?

A denúncia do dualismo de semelhantes propostas deveria ser suficiente para fragilizar as suas próprias bases. Estranhamente, não é isso o que reflecte a expansão a um nível global das práticas ciberculturais, e muitos dos seus críticos parecem até hoje ter optado por um entrincheiramento ético que, mesmo quando teoricamente útil, se mostra insuficiente e inadequado, talvez – arriscamos dizê-lo – por subestimar o peso de discursos como o da ficção científica. Num artigo que existe em tradução portuguesa, «O Corpo enquanto Acessório da Presença: Notas sobre a Obsolescência do Homem», David le Breton representa essa atitude de combate doutrinal à cibercultura. A sua posição é desde logo identificável por descrições irónicas como a seguinte:

«A “navegação” na Net ou a imersão na realidade virtual conferem aos internautas a sensação de estarem amarrados a um corpo que é um estorvo e inútil, que é necessário alimentar, cuidar, sustentar, etc., ao passo que a vida seria muito mais feliz sem tais embaraços. […] O corpo torna-se num dado facultativo. A cibercultura é frequentemente descrita, pelos seus próprios adeptos, em termos religiosos, como um mundo maravilhoso aberto aos “mutantes” que inventam um novo universo. Este paraíso da rede não pode ter corpo.» (Breton, 2004, pp. 72-73)

 

Depois de denunciar alguns dos acólitos deste desprezo do corpo, como o já citado Hans Moravec, Michael Heim, Jean-Michel Truong, Marvin Minsky ou os autodenominados extropians, David le Breton conclui com algum alívio que

«[…] como o cyborg está ainda longe de nós, a teimosia do sensível subsiste. Esta visão do mundo que liquida o corpo, que erige um culto ao espírito, que suspende o homem enquanto hipótese secundária, se não mesmo supérflua, confronta-se com uma forte resistência social. Uma humanidade sem corpo é também uma humanidade sem sensualidade, amputada do paladar do mundo.» (Breton, 2004, p. 79)

 

Contudo, como o demonstra The Matrix, é possível adoptar uma posição dualista sem que tal signifique ansiar por uma renúncia à carne. Nalguns dos (melhores?) momentos em que se socorria de um quadro conceptual gnóstico – também este uma forma muito particular de dualismo –, Philip K. Dick não deixava que o fiel da balança pendesse para qualquer das interpretações cujos pólos podem ser representados, como acima propusemos, por Neuromancer (a alma em vez do corpo) e The Matrix (o corpo em vez da alma). K. Dick, aliás, evitava semelhante terminologia, preferindo em vez disso indagar acerca do verdadeiro estatuto da realidade36: que a realidade é distinta a aparência, proposição que Dick não se cansara de repetir, não significa nem que a materialidade deve ceder o lugar ao embodiment — termo traiçoeiro, pois na verdade a ligação ao digital é uma forma de disembodiment — nem que (apesar de A Maze of Death ou Eye in the Sky) o real coincida com o que é material e corpóreo, tudo o resto sendo uma ilusão. Em última análise – e essa é também uma conclusão que pode ser retirada de muitas das suas novelas, de Time out of Joint e The Man in the High Castle ao delírio gnóstico de VALIS –, não há forma (a não ser talvez numa espécie de «Juízo Final»37) de isolar a «verdadeira realidade» dos seus simulacros. É preciso, contudo, continuar a agir, no mundo verdadeiro tanto quanto no falso.

Reduzida aos seus traços essenciais, parece ser essa também a atitude daqueles que abraçam a cibercultura – e mesmo, em boa parte, daqueles que, não o fazendo voluntariamente, são por ela arrastados38. Como o dizia Nietzche n’A Gaia Ciência (e como o repetiu Gianni Vattimo em A Sociedade Transparente), é possível «continuar a sonhar, sabendo que se está a sonhar» (cit. in Vattimo, 1989, p. 17). Sendo certo que alguns assumem o desprezo do corpo de que fala David le Breton, essa é uma posição extremista e minoritária39; é a daqueles – deverá incluir-se Breton neste conjunto? – que, como um Alonzo Quijano40 perturbado pelo excesso de leitura de livros de cavalaria, tomaram demasiado à letra o conceito de cyborg e se esqueceram de fazer o devido trabalho de casa equilibrando as suas leituras com, pelo menos, o manifesto de Donna Haraway e How we Became Posthuman de Katherine Hayles. Até a esses, contudo, a tecnologia tem falhado. Promessas (ou ameaças, se voltarmos a assumir o papel de advogado do diabo) como a teledildónica não têm passado disso mesmo; os robots, para além da ocasional competição entre equipas de engenheiros em aspectos ínfimos da pesquisa em Inteligência Artificial, continuam a ser essencialmente os braços mecânicos que fazem trabalho repetitivo, e não as entidades cibernéticas que dialogam com os humanos, nem enquanto seus servos nem – muito menos – de igual para igual; a própria realidade virtual é ainda uma acumulação de protótipos.

Todavia, nenhuma destas ilustrações deve servir como negação de que estejamos imersos nessa profunda e já irreversível articulação com a tecnologia (que faz de nós um tipo muito particular de cyborgs), articulação cujas dimensões sociais receberam o nome de «cibercultura». Assim como o programa espacial não pode ser confundido com os delirantes romances planetários de Edgar Rice Burroughs, publicados no início do século XX, nem com a sua prole nos pulps americanos das décadas posteriores – e, já agora, nem mesmo com as extrapolações baseadas em equações cientificamente correctas de Larry Niven em Ringworld –, a mesma distinção tem (pelo menos por ora) de ser feita entre a cibercultura e o cyberpunk. A única associação que deve permanecer é de tipo metafórico, ou talvez hermenêutico, pois no cyberpunk e seus precursores podemos descobrir uma grelha de leitura que nos permite, salvaguardadas as devidas modificações, compreender as actuais práticas ciberculturais que têm como campo de acção privilegiado a rede de redes que é a Internet.

Destas práticas – se é que é possível cometer o delito que consiste em reduzir a sua análise a um parágrafo e a dois ou três adjectivos — diríamos, antes de mais, que são, por comparação com as verdadeiras realidades alternativas do ciberespaço quando ficcionado, de «banda estreita». O que as personagens das novelas seminais de Gibson, Sterling e outros fazem num ambiente artificial multi-sensorial, os «cibernautas» reais fazem com texto e com representações gráficas que, apesar do seu realismo crescente e da envolvência (vulgo «vício») que provocam, são ainda facilmente distinguíveis de tudo o que está fora do ecrã. Diríamos ainda que são exploratórias: a tecnologia é assumida, talvez mais heideggerianamente do que propunha o próprio Heidegger ao falar da técnica como «Gestell», como um conjunto de potencialidades. Numa espécie de darwinismo da técnica, aquelas que atraem mais adeptos por mais tempo e que se mostram capazes de gerar novas potencialidades prosperam, as que ficam confinadas a um núcleo minoritário de aderentes sobrevivem apenas enquanto têm o carácter de curiosidade41. E, talvez porque o conhecimento dalguns protocolos da ficção pode servir como uma espécie de vacina – isto é, ou porque leram os cyberpunks ou outra ficção científica, ou porque simplesmente o mundo actual é inseparável do contributo da ficção científica42 –, são práticas predominantemente lúdicas. Não no sentido — também verdadeiro, mas redutor – de que os seus praticantes só se dedicam a actividades inconsequentes mas sim que possuem o distanciamento suficiente para suspeitar de qualquer anúncio de que a «realidade última» está aquém ou além-ecrã. Assumem identidades alternativas e tornam-se membros activos de comunidades puramente virtuais, por exemplo, não porque na pele dessa nova persona ou nesse novo grupo possam finalmente encontrar o verdadeiro reflexo da sua personalidade, nem porque queiram emular um demiurgo que gera o falso a partir do verdadeiro, mas apenas porque essa é uma possibilidade inscrita na técnica. Enquanto essa atitude lúdica se mantiver, as «comunidades virtuais» continuarão – e apesar da pertinência de análises como o quase canónico The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, de Allucquère Rosanne Stone – a ser antes de tudo «virtuais», e só depois «comunidades».

 

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Notas:

*
Texto realizado no âmbito do Projecto «Tendências da Cultura das Redes em
Portugal» (POCTI/COM/34436/99).

1 
A oposição entre extrapolação e especulação é uma das mais incontornáveis
no universo dos estudos sobre a ficção científica. No presente contexto,
bastará referir que a ficção extrapolativa procura, com o rigor possível,
imaginar como será um futuro próximo se se seguirem as tendências no
estado presente da tecnologia, enquanto a ficção especulativa é muito mais
livre e menos rigorosa, retratando por isso, regra geral, sociedades dum
futuro longínquo. Em coerência com esta primeira distinção, a extrapolação
tende também a ocorrer muito mais nas obras de hard sf (isto é, o
subgénero que se reclama de maior rigor relativamente ao estado do
conhecimento nas chamadas «ciências duras») ao mesmo tempo que a
especulação se aproxima da soft sf (mais próxima das ciências humanas) ou
mesmo da fantasy.

2
Arthur C. Clarke, para além de ser um dos autores mais relevantes de
ficção científica – principalmente depois de se tornar mais conhecido do
grande público através do filme 2001, adaptado do conto «The Sentinel» e
depois «novelizado» –, foi, tanto ou mais do que os outros nomes
referidos, um divulgador (e futurólogo) da ciência e da tecnologia.
Refiram-se duas das colectâneas que reúnem os seus ensaios, quase sempre
escritos para revistas ou jornais destinadas ao público geral: Report on
Planet Three and Other Speculations
(onde surge a ideia, acima referida,
de hotéis no espaço) e Profiles of the Future, este último tendo merecido
o direito a uma «Millenium Edition» quase quarenta anos depois da edição
original.

3
O que pressupõe uma aproximação, se não mesmo uma inversão, das categorias
do orgânico e do mecânico, algo impensável antes do século XX, mas que
Georges Canguilhem há muito identificou: «la inversión de la relación
entre la máquina y el organismo, provocada por una comprensión sistemática
de los inventos técnicos como se fuesen extensiones de la conducta humana
o de los procesos de la vida, está de cierto modo confirmada por la
creencia de que el uso generalizado de las máquinas ha impuesto lentamente
la sociedad industrializada contemporánea al hombre. Con Frederick Taylor
y los primeros técnicos que hicieron estudios científicos de los
movimientos en el trabajo, el cuerpo humano se media como si funcionase
como una máquina. […] A partir de aquí, el examen sistemático de ciertas
condiciones fisiológicas, psicotecnológicas, e incluso psicológicas […]
culminó finalmente en una inversión, llamada revolución inevitable por
Friedmann, en la que la tecnología adaptaría las máquinas al cuerpo
humano.» (Canguilhem, 1952, p. 58, ênfase nossa)

4
Esta «golden age» é habitualmente identificada como sendo o período entre
o ano de 1938, data em que John W. Campbell assume o comando editorial da
revista Astounding Science Fiction (hoje Analog) e um ponto mais incerto
na segunda metade da década de 50, quando o domínio das revistas (e
portanto da ficção curta ou em serials) começa a dar lugar às novelas e ao
book-length, e mesmo nesse universo dos magazines a influência da
Astounding se reduz em favor de publicações concorrentes.

5
Para Gary K. Wolfe, em The Known and the Unknown (Wolfe, 1979), estes
ícones são cinco, um número algo diferente do que propomos: a cidade, a
wasteland, a nave espacial, o robot (onde se poderia incluir o computador)
e o monstro (onde tem também lugar o alien).

6
Não existe – pelo menos que seja do nosso conhecimento – nenhum estudo que
demonstre, recorrendo a ferramentas estatísticas, o modo como estes e
outros ícones se distribuíram ao longo da história do género, o que nos
deixa apenas com a intuição de que só com o aparecimento dos primeiros
computadores digitais o topos do «cérebro artificial» começa a disputar a
primazia a todo o subgénero das aventuras planetárias ou space opera;
ainda que o robot tivesse lugar na ficção científica desde o início dos
magazines especializados neste género, os computadores tê-lo-ão tornado
mais plausível.

7
Ainda hoje são lembradas frases desse discurso como «it is time to take
longer strides – time for a great new American enterprise – time for this
nation to take a clearly leading role in space achievement» e «I believe
that this nation should commit itself to achieving the goal, before this
decade is out, of landing a man on the moon and returning him safely to
the Earth.» Um objectivo claramente propagandístico, mostrado como sinal
de desafio aos soviéticos, o que explica que a ida à Lua seja a mais
dispendiosa das suas promessas (531 milhões de dólares, só no orçamento do
ano seguinte), quando as restantes tinham pelo menos alguma utilidade
económica: o desenvolvimento de um foguete nuclear (30 milhões de
dólares), o desenvolvimento dos satélites de comunicações (50 milhões de
dólares), e os satélites destinados à pesquisa meteorológica (75 milhões
de dólares). O fac-simile do discurso de onde as passagens anteriores
foram citadas, e onde podem também ser vistas as suas passagens cortadas e
acrescentadas, está disponível online no site da CNN, em

http://archives.cnn.com/2001/TECH/space/05/25/kennedy.moon/speech.excerpts.pdf
.

8
Deixamos duas curtas passagens desse ensaio, onde se argumenta que a
própria ficção científica foi uma das baixas que resultaram desse feito: «Science
is speculative (science is fiction?). When it becomes real, it’s merely
technology. Real space travel almost killed the science fiction field.» (Hartwell,
1984, p. 75) e «The world didn’t care that the SF field had been right all
along […]. Fewer and fewer people were buying and reading SF books and
magazines. During the years after Sputnik, the field declined radically.»
(Hartwell, 1984, p. 76)

9
O acidente do vaivém Challenger, em 1986, fecha simbolicamente este ciclo
de ascensão e declínio do programa espacial, que se inicia com o
lançamento do primeiro satélite Sputnik (1957) e que tem como auge a
chegada à Lua (1969). Ter sido o primeiro voo de um vaivém com um civil a
bordo, a professora Christa McAuliffe, reforça ainda mais esse peso
simbólico. Até mesmo o facto de na sequência do acidente ter havido um
aumento das pressões de grupos activistas como o National Space Institute,
a L-5 Society e o Space Studies Institute o confirma, pois é também uma
resposta à diminuição dos fundos para o desenvolvimento espacial. A este
propósito, cf. Astrofuturism, de De Witt Douglas Kilgore (Kilgore, 2003,
em esp. a p. 7) e também o capítulo 3 de The Dreams our Stuff is made of,
de Thomas Disch (Disch, 1998).

10
Segundo as suas próprias palavras, «I believe that in about fifty years
time it will be possible to programme computers with a storage capacity of
about 109 to make them play the imitation game so well that an average
interrogator will not have more than 70 per cent chance of making the
right identification after five minutes of questioning.» (Turing, 1950, p.
49)

11 Cf., em particular, apenas de Hubert Dreyfus, What Computers still can’t
do
(Dreyfus, 1972) versão revista e aumentada do original What Computers
can’t do
, e – título mais recente mesmo que já com duas décadas –, de Hubert e Stuart Dreyfus e Tom Athanasiou,
Mind over Machine (Dreyfus,
Dreyfus e Athanasiou, 1986).

12
Particularmente tendo em conta que ao robot têm de estar associados órgãos afectores (sensoriais) e efectores (motores) à imagem dos dos humanos ou
outros animais, algo muito mais específico (e difícil de implementar) do
que os periféricos – quer de input quer de output – de um computador.

13
Se necessário, pode ainda recuar-se a Edmond Hamilton, nome hoje quase
esquecido do género, que já em 1928, na novela The Comet Doom, fazia dos
exploradores do espaço um agregado de componentes orgânicas e maquínicas.

14
Pelo menos que diz respeito aos «waldos»; em contrapartida, um artefacto
como o que surge no conto de C. L. Moore não saiu ainda do universo da
ficção.

15 Cordwainer Smith serve como um dos exemplos mais acabados daquilo que é
afirmado numa nota anterior: o facto de ter concebido todo um universo de
personagens e situações num futuro bastante longínquo, a que deve
acrescentar-se o seu estilo bastante «colorido», colocam-no na fronteira
entre a SF e a fantasy.

16
Apontemos o seu início para os anos 60, se bem que muitas das suas
características tivessem já emergido na década anterior.

17
Não é aqui o lugar mais adequado para discutir as aproximações e
afastamentos entre ficção científica e fantasy, muito menos para recensear
a tinta que correu em defesa da maior relevância das semelhanças ou, pelo
contrário, do que os distingue. Limitamo-nos por isso a assinalar dois
inegáveis pontos de contacto: o facto de ambos serem géneros «não
realistas» (ainda que a fantasy possa mais correctamente ser considerada
anti-realista) e a enorme quantidade de autores que, embora muitas vezes
por razões económicas, alternam entre eles ao mesmo tempo que recusam o
realismo (ou mainstream, no jargão também comum à SF e à fantasy).

18
E já na década de 70 havia pelo menos conseguido a unanimidade da crítica,
particularmente a académica: em 1975, o primeiro número temático da
Science-Fiction Studies (o quinto) é-lhe exclusivamente dedicado.

19 Leigh Brackett veio a ganhar alguma notoriedade como autora de guiões para
o cinema, cobrindo todo um espectro dos géneros que, menores na
literatura, mais marcaram o chamado período clássico de Hollywood. São
dela os argumentos de The Big Sleep (policial), Rio Bravo (western), e
posteriormente e em colaboração, The Empire Strikes Back (ficção
científica).

20
«Revolucionária» não só no sentido de «inovadora» mas também – e
fundamentalmente – de «subversiva» e de «marxista».

21
E, entre outras actividades que teve ao longo da sua vida, ex-agente da
CIA. No que respeita a uma tangencial ligação ao feminismo, há pelo menos
a assinalar o conto «The Women Men don’t see», que ironicamente – devido
ao seu pseudónimo – se pensou ter sido escrito por um homem.

22
E também, faça-se-lhe justiça, «Waldo», o que tem lugar na seguinte
passagem: «But Delphi is in no sense a robot. Call her a waldo if you must.»
(Tiptree, Jr., 1973, p. 522)

23
Pelo menos enquanto não «naturaliza» o outro corpo, o que é
particularmente complicado quando o objectivo é satisfazer alguns
imperativos fisiológicos: «P. Burke, trying to rub her wired-up elbow, is
suddenly smothered in two bodies, electrodes jerking in her flesh. […] She’s a live girl, and live girls have to go to the bathroom after a
night’s sleep even if their brains are in a sauna cabinet in the next room.
And P. Burke isn’t in that cabinet, she’s in the bathroom.» (Tiptree, Jr.,
1973, p. 518)

24
O que é ocasionalmente relembrado, como nesta passagem que poderia ser uma
descrição do filme eXistenZ, de David Cronenberg: «The disimprovement in
her looks comes from the electrode jacks peeping out of her sparse hair,
and there are other meldings of flesh and metal. On the other hand, that
collar and spinal plate are really an asset; you won’t miss seeing that
neck.» (Tiptree, Jr., 1973, p. 517)

25
O único elemento, na célebre classificação de Marx do processo produtivo,
que parece escapar a esta ligação parece ser o «capital» (e, a fortiori,
aqueles que o detêm). Mas numa era – como a presente – em que até o
dinheiro foi virtualizado e em que é a tecnologia ela própria, muito mais
do que a classe detentora dos meios, a comandar o processo (deveríamos
falar de «dominação da informática» em vez de «informática da
dominação»?), nem estes parecem escapar a um processo de «cyborguização»
generalizada.

26
Mas não, ao contrário do que se pensa, o de «cyberpunk», este último
cunhado por Bruce Bethke num conto com esse mesmo nome escrito em 1980 mas
só publicado em 1983 (Bethke, 1983).

27
Ou especulação? Bruce Sterling, em sucessivos pontos do prefácio à
colectânea de autores (por ele classificados como) cyberpunks,
Mirrorshades, reclama para o movimento a herança da hard SF, mas
igualmente – o que poderá surgir como contraditório a um adepto do género
que esteja habituado a categorizações estanques – da New Wave. Do primeiro
caso podem citar-se as passagens: «This movement was quickly recognized
and given many labels: Radical Hard SF, the Outlaw Technologists, the
Eighties Wave, the Neuromantics, the Mirrorshades Group.», «They [os
cyberpunks] love to grapple with the raw core of SF: its ideas. This links
them strongly to the classic SF tradition.», ou «the techniques of
classical “hard SF” extrapolation, technological literacy – are not just
literary tools but an aid to daily life». Sobre a influência da New Wave,
lê-se «Throughout the Sixties and Seventies, the impact of SF’s last
designated “movement”, the New Wave, brought a new concern for literary
craftsmanship to SF. Many of the cyberpunks write a quite accomplished and
graceful prose; they are in love with style» e ainda, em agradecimento aos
autores que para eles constituíram uma referência, «the streetwise
edginess of Harlan Ellison. The visionary shimmer of Samuel Delany. The
free-wheeling zaniness of Norman Spinrad and the rock esthetic of Michael
Moorcock; the intellectual daring of Brian Aldiss; and, always, J. G.
Ballard.» (Sterling, 1986, citado a partir de fonte online)

28
Destacamos o primeiro livro dessa série, intitulado To your Scattered
Bodies go
.

29
Um dos últimos contos que escreveu, publicado na revista Playboy, «I Hope
I Shall Arrive soon» (Dick, 1980), possui uma intriga com notórias
semelhanças com A Maze of Death, ainda que a ilusão gerada pelo computador
de bordo duma nave não seja colectiva como nessa outra novela.

30 Cf., no entanto, a esclarecedora demonstração de que Descartes ainda tem
uma palavra a dizer, no artigo de Erik Davis «Synthetic Mediations: Cogito in the Matrix» (Davis, 2002).

31
Este «quase» seriam as suas ideias inatas, i. e., inscritas pelo
programador humano.

32
«Instead of trying to produce a programme to simulate the adult mind, why
not rather try to produce one which simulates the child’s? If this were
then subjected to an appropriate course of education one would obtain the
adult brain. Presumably the child-brain is something like a note-book as
one buys it from the stationers. Rather little mechanism, and lots of
blank sheets. (Mechanism and writing are from our point of view almost
synonymous.) Our hope is that there is so little mechanism in the
child-brain that something like it can be easily programmed. The amount of
work in the education we can assume, as a first approximation, to be much
the same as for the human child.» (Turing, 1950, p. 62)

33
É também, salvas as devidas diferenças, uma proposta também partilhada por Marvin Minsky, que – caso digno de nota que revela o quão próxima está a
inteligência artificial da ficção – foi também, a título pontual, autor de
SF, tendo escrito com Harry Harrison a novela The Turing Option, onde a
consciência do protagonista, Brian Delaney, é transferida para um
computador.

34
O que coloca o problema de, imaginando a possibilidade de duplicar uma
mesma personalidade em diferentes meios, e entregando ambas a experiências
posteriores distintas, saber qual das duas é a mais fiel depositária do
«original». Para uma interessante discussão deste paradoxo, cf. «Total Recall and
The Sixth Day: The Problem of Personal Identity» (Rowlands,
2003).

35
É aqui, no essencial, que reside a maior sofisticação por comparação com
um modelo dualista «puro» como o cartesiano, modelo esse cuja maior
fraqueza é a dificuldade em indicar o ponto de contacto entre duas
substâncias por definição imiscíveis.

36
De certa forma, o dualismo de muitas das doutrinas gnósticas não passava
também pela oposição corpo vs. alma, e sim pela oposição entre, de um lado
– o da realidade falsa produzida por um demiurgo – a aliança corpo/alma,
e, do outro, o espírito ou centelha divina, memória e ponto de contacto
com a verdadeira realidade que transcende o mundo. Cf., para uma discussão
detalhada das grandes variantes do gnosticismo, The Gnostic Religion, de
Hans Jonas (Jonas, 1958-70).

37 Cf. o seu ensaio «How to Build a Universe that doesn’t Fall Apart Two Days
Later» (Dick, 1978).

38
O que é dizer: aqueles que, sob pena de «info-exclusão» auto-infligida,
pelo menos usam o correio electrónico, acedem à Internet, etc.

39
É, diríamos, não a dos «crentes» mas a dos «fanáticos».

40
Ou ainda um Jack Isidore, personagem da novela mainstream de Philip K.
Dick Confessions of a Crap Artist.

41
Assim tem sido, pelo menos por ora, com as interfaces de navegação
tridimensional na World Wide Web, como refere o especialista em
usabilidade de interfaces Jakob Nielsen (Nielsen, 1998)

<;a name=”Nota42″>42
É essa a tese de Thomas Disch, ele próprio autor de ficção científica, num
seu interessante livro-ensaio com o revelador título The Dreams our
Stuff is Made of
(Disch, 2000).

 

 


© Jorge Martins
Rosa




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Texto: Mai/06
Actualização: 13/Mar/08

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