Dos Estilhaços ao Ecrã

Será que o «depois da virtude» que MacIntyre analisa se concretizou em pleno? Dito de outra forma, será que o declínio da moral heróica — ao menos na sociedade ocidental — equivale a uma extinção ou apenas à retirada (estratégica?) para um plano recuado, aparentemente insignificante nas nossas vidas cada vez mais quotidianas?

Ao olharmos para os videojogos, essa moralidade que enaltece o herói ou aventureiro (quase sempre masculino) surge aí como dominante, como que indiferente às exigências da vida contemporânea, por vezes apresentando-se-lhes em oposição quase diametral.

Mesmo evitando o conceito de alienação, falar de escapismo é demasiado fácil. Falar de alívio de tensões ou de sublimação da agressividade, sem ser tão fácil, está ainda no território do óbvio.

Ora, é ao deparar-se com a questão da moralidade que o óbvio recusa avançar, em particular quando se pretende averiguar a posição que as novas tecnologias ocupam — na sua vertente lúdica, mas sem esquecer outras — no «jogo de forças» das diferentes morais. Saber se estas apenas constituem mais um fragmento nessa soma de sobrevivências (que é o modo como o próprio MacIntyre descreve a moral contemporânea) ou se, pelo contrário, é possível dar-lhes um sentido (e qual) é o que se propõe com este artigo.

Comunicação apresentada no I Congresso da SopCom (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, organização da SopCom), a 23 de Março de 1999. Publicada in José Bragança de Miranda e Joel Frederico da Silveira (orgs.), As Ciências da Comunicação na Viragem do Século: Actas do I Congresso da SopCom, Lisboa, Vega, 2002, pp. 862-865.

Videojogos, Moralidade e Subjectividade

 

Comunicação apresentada no I Congresso da SopCom (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, organização da SopCom), a 23 de Março de 1999

in José Bragança de Miranda e Joel Frederico da Silveira (orgs.), As Ciências da Comunicação na Viragem do Século: Actas do I Congresso da SopCom, Lisboa, Vega, 2002, pp. 862-865.

 

«O herói moderno não é um herói; representa heróis.»

Walter Benjamin, Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of High Capitalism

«O período heróico terminou, e também a fase agonística parece ser uma coisa do passado.»

Johan Huizinga, in Homo Ludens

«No fundo, não acho que seja preciso qualquer especial talento para alguém subir acima do chão e pairar no ar. Todos temos isso em nós – todos os homens, mulheres e crianças – e, com bastante esforço e concentração, qualquer ser humano é capaz de repetir os feitos que eu realizei como Walt o Rapaz-Maravilha. É preciso aprender a deixar de sermos nós próprios. É aí que tudo começa e daí que parte todo o resto (…) Fechamos os olhos; afastamos os braços; deixamo-nos evaporar. E então, pouco a pouco, elevamo-nos do chão. Só isso.»

Paul Auster, in Mister Vertigo

«Talvez a única amargura verdadeira e possível seja a de comprovar que a aventura vivida é uma arma de duplo fio: que talvez seja mais plena mas que em contrapartida exclui as outras, as aventuras que os livros contêm.

Javier Marías, «O Duplo Fio da Aventura», in Literatura e Fantasma

«– Karl, participaste em batalhas. O que é que se sente realmente quando se ouve silvar as balas?
– Nada de especial. Soa melhor quando se lê isso em velhos livros. Nunca ouvi silvar uma bala.»

Ernst Jünger, in Jogos Africanos

 

Dizer que a linguagem da moral está num grave estado de desordem, como o fez Alasdair MacIntyre em After virtue, continua a ser uma sugestão inquietante. Cada vez mais inquietante, diríamos mesmo, na medida em que se trata de um facto que poucos ousarão negar. Não que a crise seja particularmente pronunciada ao nível das crenças e das acções de cada um, pois vamos vivendo nesse apocalipse tão estável que já nem dele nos damos conta. O problema só surge, como bem assinala MacIntyre, quando nos detemos no sistema que essa moral deveria configurar e tentamos proceder a uma análise das suas manifestações, da linguagem às práticas que esta é suposta reflectir. Aí chegados, aquilo com que nos deparamos são meros estilhaços ou sobrevivências de morais que diríamos incompatíveis, não se desse o caso de esse sincretismo ser afinal o nosso quotidiano. Se é a acção e não o conhecimento aquilo que nos impele, a necessidade de tomar uma cartesiana decisão não tarda: ou bem que ignoramos – deliberadamente ou por força do desconhecimento – a incompatibilidade ou bem que nos decidimos pela coerência, elegendo uma das morais possíveis e seguindo-a até às suas últimas consequências.

Muitos anos antes de MacIntyre, Georg Simmel falava da aventura como alternativa possível, porventura necessária, a uma modernidade desprovida de sentido: segundo ele, a aventura seria nos tempos actuais «um corpo estranho na nossa existência, que contudo se liga de alguma forma ao centro desta» (Simmel, 1922, p. 306). Os objectivos são sem dúvida distintos em cada um dos autores – MacIntyre procura responder a uma interrogação teórica e filosófica, Simmel resolver uma angústia através da escolha de um rumo para a acção –, mas ambos se concentram um mesmo tipo de moral perdida: a moral heróica. É nos dois autores, mesmo que isso implique um permanente ziguezague, que buscamos resposta a ainda um terceiro tipo de problema, aquele que motiva este percurso ainda demasiado tacteante. Referimo-nos ao predomínio dessa tão remota – porventura primeva – moral nas utilizações lúdicas das novas tecnologias, em particular nos videojogos.

O ouvinte apressado não tarda a encontrar uma progressão, se não mesmo uma narrativa, em pano de fundo: das sociedades arcaicas para a modernidade (os problemas de MacIntyre e Simmel) e desta para a pós-modernidade (o nosso problema). Num primeiro momento, uma moral não só coerente como dominante (geograficamente, numericamente, o que se queira), no segundo a inquietação provocada pelo desaparecimento da coerência, no terceiro a despreocupada aceitação da multiplicidade de culturas, de padrões, de opções de vida e de tudo o resto a que se chamou a condição pós-moderna. Alguma verdade haverá nesta interpretação, mas ela continua a não tocar o essencial do problema: se o heroísmo começou por ser uma imposição (colectiva e não individual, convém sublinhar) e se ainda há pouco era uma saída quase estética (desta vez claramente centrada no indivíduo) para um impasse niilista, por que razão é hoje uma opção (ou melhor, a sua ilusão) adquirida a preços módicos e desfrutada com todo o conforto frente a um ecrã?

Mesmo que a aceitação dessa temporalidade com três grandes épocas ou períodos seja meramente provisória, é em algo que caracteriza o segundo destes períodos que pode encontrar-se uma primeira explicação: o «quotidiano». Visto enquanto ponto de chegada das morais pré-modernas, o quotidiano é aquilo que as acolhe e que procura negá-las. A negação é quase evidente por si mesma: por alguma razão A. Gouldner (cit. por Mike Featherstone, «The Heroic Life and Everyday Life», in Undoing Culture, p. 58) diz que «o quotidiano [everyday life] é um contra-conceito [pois] a vida quotidiana estabelece-se como real por contraste com a vida heróica e devido à crise desta última». Mas é só quando transitamos para a assim chamada pós-modernidade (admitindo que tal conceito corresponde a algo concreto) que percebemos que, acima do seu carácter de negação, o quotidiano é o grande «recipiente» que acolhe as morais que parecia negar. Exemplo notável – é por isso que acreditamos não nos termos por um momento afastado do tema proposto – são as actuais formas de diversão, entre as quais se contam os videojogos. As feiras populares ou os desportos radicais seriam outros tantos exemplos de um quotidiano que tudo absorveu: onde está – hoje – o verdadeiro risco? Quer num caso quer noutro, dominam os regulamentos e dispositivos de segurança, e nem pensar em arriscar se esse mesmo risco não estiver reduzido ao mínimo. Algo semelhante ocorre com os jogos de computador: aventura, sim, mas na segurança do lar; heróis e heroísmo, mas sempre por delegação. Talvez por isso mereçam cair em saco roto as acusações de sexismo nos videojogos. Como poderia ser de outro modo, se temos como padrão incontornável sociedades em que a moral favorecia as actividades associadas à masculinidade?

Antes que questões como esta se sobreponham ao nosso tema central, retomemos a questão da unidade da moral. O «quotidiano» tem a vantagem de fazê-lo por integração quase sincrética: é na medida em que tudo pode ser retomado pelo quotidiano que este é o «grande unificador» de morais incompatíveis. Mas não será isso uma forma de escamotear a própria impossibilidade dessa unificação? Por isso mesmo acreditamos ser o quotidiano um conceito muito mais pós-moderno do que moderno, mesmo que tenha triunfado muito antes do seu tempo. É que, mesmo correndo o risco de anacronismo, ainda vale muito mais uma interrogação (moderna) profunda mas inconclusiva do que uma aceitação (pós-moderna) dum estado de coisas tal como com ele nos deparamos. É aqui que entram duas respostas alternativas e incompatíveis, uma «argumentando» em favor de uma unidade, a outra procurando provar que tal é impossível. Chamemos-lhe – não se pretende sequer que os termos sejam provisórios – uma resposta narrativa e uma resposta dramática.

Não há qualquer originalidade nesta proposta – quando muito, esta existirá no aproveitamento que queremos dela fazer. É o próprio MacIntyre quem chama a atenção para a forma como os poemas homéricos prenunciam já uma iminente transição da moral estritamente heróica. Numa sociedade complexa, em que as interacções entre os indivíduos são também complexas, a vitória nem sempre é uma verdadeira vitória, por exemplo se foi conseguida à custa de um sacrifício de outros princípios morais que entretanto foram ascendendo na escala de valores. Poderá parecer um contra-senso, se pensarmos na eterna teoria dos géneros ou tipos literários, mas é o teatro – em particular a tragédia, por razões óbvias – quem vai explorar as tensões entre princípios e a necessidade de optar por um deles perante determinada situação. Mais ainda do que a já mencionada incitação à acção de Descartes, o que as tragédias nos ensinam é que não há, pelo menos em teoria, qualquer possibilidade de harmonizar duma vez por todas os diferentes valores perante os quais nos regemos. E que aquilo que é uma impossibilidade em teoria obriga necessariamente a uma opção quando nos encontramos no reino da prática (por isso essa opção é iminentemente trágica).

Ora, o género narrativo (porventura muito melhor do que qualquer teoria ética depois de Platão, que no fundo buscava o mesmo) toma justamente o caminho oposto. Por mais que o percurso narrativo seja sinuoso, por mais que haja pontas soltas ou becos sem saída, por mais que as experiências do modernismo tenham procurado subverter o cânone do género, aquilo a que as narrativas aspiram é a unidade e a coerência. É verdade que o romance pode estar à beira do esgotamento: por isso mesmo a exigência de narrativas e da coerência que estas trazem procura agora deslocar-se para outros terrenos. Um deles, como espero que agora seja óbvio, é o dos videojogos. Acredito que este, como outros (ocorrem-me como exemplo certos reality-shows), atrai por ser uma ilha num oceano de cada vez maior incoerência.

A não ser que o contexto o exija, não me agradam expressões demasiado sonantes como «condição humana» ou «condição pós-moderna». Mas elas apontam para algo que não pode deixar de ser notado: que a nossa vida se faz dessa outra tensão entre o que aceitamos (despreocupadamente ou não) como sendo incoerente e o que exigimos – em nome da sanidade, talvez – que tenha coerência. O primeiro caso pode ser o território do «pós-moderno»; o segundo é o da moderna aventura em busca de coerência. Mesmo que de uma forma virtual, fictícia e necessariamente limitada, os videojogos indicam possíveis destinos para essa busca. Cabe-nos dar-lhes o seu devido valor.

 

Texto: 23/Mar/1999

© Jorge Martins Rosa

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