Geração Joystick

Breve artigo para o Jornal de Letras, Artes e Ideias de 3 a 16 de Novembro de 1999 sobre a relação entre videojogos e cibercultura.

Breve artigo para o Jornal de Letras, Artes e Ideias sobre a relação entre videojogos e cibercultura.

Jornal de Letras, Artes e Ideias, 3 a 16 de Novembro de 1999

 

Cibercultura: e isso existe? Admitamos cautelosamente – para utilizar um termo banalizado pela informática – que está a instalar-se. Mais do que isso seria precipitado, num momento em que o analfabetismo funcional é um facto (pense-se na falta de à-vontade com que muitos «enfrentam» as novas tecnologias), que a globalização tem sido feita à custa da exclusão, que o acesso «iluminado» ao universo online é ainda uma série de boas vontades apenas pontualmente concretizadas. O «ciberconvertido» dirá que os critérios quantitativos são inadequados ao campo cultural (não foram as nossas maiores heranças culturais privilégio duma minoria?), o céptico contra-argumentará alegando que na época da cultura de massas há que contar com o veredicto do número. Ora, de todas as dimensões a que podemos associar o prefixo «ciber», apenas uma atingiu um grau suficiente de disseminação e de «massificação», mesmo que muitos hesitem em adjectivá-la como «cultural»: os videojogos. Numa frase curta: todos (ou quase) já jogaram frente a um ecrã.

Afinal, os videojogos existem há 37 anos (não se trata de gralha: o primeiro intitulava-se Space War e surgiu em 1962) e fazem cada vez mais parte da nossa vivência, a ponto de existir actualmente uma vaga de revivalismo pelos jogos primitivos, algo só por si digno de análise sociológica. Não que tais análises abundem: os interesses de investigação têm tido na grande maioria dos casos uma vertente psicologizante, em busca dos efeitos (e eventual perniciosidade) dos videojogos nas crianças. Ora, nem estas detêm a exclusividade do consumo nem a abordagem pelos «efeitos» é a mais relevante. Dum ponto de vista cultural, e apesar do risco de acusações de «funcionalismo», talvez seja preferível perguntar: o que há afinal nos videojogos que faz com que atraiam cada vez mais público?

Mais do que uma perspectiva funcional, a questão apela a um recuo fenomenológico que nos diga qual a experiência fundamental propiciada pelos videojogos. Das formas de chegar a uma resposta, a que mais nos atrai é o recurso ao conceito de género. Basta um grau mínimo de iniciação neste universo para se saber que são múltiplas as categorias de videojogos (arcade, aventura, estratégia, wargame, etc.). Mesmo pondo de parte o facto de tais classificações serem essencialmente intuitivas (há quem procure devolver-lhes a cientificidade perdida), servem como primeiro ponto de referência a caminho do objectivo fundamental, que é o de saber se sob o múltiplo podemos encontrar o uno, isto é, se há, ao nível da experiência do jogador, algo que atravesse todos esses géneros.

Tudo indica que sim, quanto mais não seja pelo facto de as diferentes categorias estarem a «hibridizar-se» e a convergir para esse «super-género» que é a realidade virtual. Se jogos como os de plataformas ou de arcade nos dão a experiência de uma progressão espacial, e se outros como os de simulação, fazendo jus ao próprio nome, permitem experimentar uma realidade sem contra-indicações, em todos eles parece ser comum a possibilidade de entrar num universo distinto do do quotidiano, de encarnar (mesmo que não na pele) outras personagens.

Perguntar-se-á se isso é bom ou mau e que tipo de consequências daí resultarão, seja do ponto de vista individual seja do ponto de vista da sociedade. Ao dirigir o olhar para o indivíduo, a acusação mais comum é a de que os jogos podem ser algo da ordem do vício, ao ancorarem o sujeito numa realidade puramente artificial. Receios pertinentes, mas pouco fundamentados enquanto houver algo de físico (o joystick, o ecrã) a mediar a interacção. No momento em que esta mediação desaparecer – o filme eXistenZ mostra-nos uma etapa intermédia em que o corpo carece de uma mutilação para se conectar –, será tempo de reavaliar a situação. Enquanto tal não passa de ficção, talvez não fosse má ideia deslocar o nosso olhar para algo que já está plenamente instalado, algo ao nível do social. Se podemos falar de uma geração joystick é porque praticamente todos os artefactos tecnológicos emulam o universo dos videojogos. Seja o simples levantamento numa caixa Multibanco, seja a coordenação de uma régie num estúdio de televisão, as interfaces e formas de interacção são as que foram inauguradas pelos videojogos. Quem cresceu a jogá-los tem-nas como segunda natureza. McLuhan falava da tecnologia como extensão. Deveremos acrescentar Darwin e falar de uma sobrevivência dos mais aptos?

 

Texto: 3/Nov/99

© Jorge Martins Rosa

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