Dá-me um Momento da sua Atenção?

Com «Spectacle, Attention, Counter-Memory», e logo depois com Techniques of the Observer, Jonathan Crary trouxe em 1989-90 para a ribalta académica o conceito de «atenção», demonstrando como o sujeito moderno foi articulado pelas tecnologias do olhar. Cauteloso, como seria de prever num historiador de arte, o seu programa de pesquisa, continuado em Suspensions of Perception, raras vezes vai além do início do século XX, apesar da relação quase simbiótica que estabelece com o «espectáculo» debordiano, bem como da notória relevância das suas análises para compreender a condição contemporânea. 24/7, livro-ensaio publicado em 2013, só parcialmente quebra este silêncio quanto às actuais tecnologias da atenção, embora nos dê algumas pistas. O mesmo pode dizer-se de outros autores que quiseram arriscar onde Crary tem sido menos loquaz. Cruzando essas referências, procuraremos nesta comunicação contribuir para tal tarefa, centrando-nos na ubiquidade dos ecrãs e pontualmente nalgumas abordagens artísticas que a demonstram.

Comunicação apresentada no Festival Post-Screen: Device, Medium and Concept. International Festival of Art, New Media and Cybercultures, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 29 de Novembro de 2014, organização do Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes. Publicado in Ana Vicente e Helena Ferreira (orgs.), Post-Screen: Device, Medium and Concept, Actas do International Festival of Art, New Media and Cybercultures, Lisboa, CIEBA-FBAUL, pp. 116-127.

O Ecrã como Dispositivo de Mobilização

 

Comunicação apresentada no Festival Post-Screen: Device, Medium and Concept. International Festival of Art, New Media and Cybercultures, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 29 de Novembro de 2014, organização do Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes.

Publicado in Ana Vicente e Helena Ferreira (orgs.), Post-Screen: Device, Medium and Concept, Actas do International Festival of Art, New Media and Cybercultures, Lisboa, CIEBA-FBAUL, pp. 116-127.

 

«We’re half awake
In a fake empire»

The National, «Fake Empire»

 

Introdução.

Já que falamos em atenção…

A capa da Wired de Agosto deste ano estava a olhar para mim do escaparate, cativando-me com a profusão de cores e com o título «Smart Phone: How the Mobile Age Sparked a Creative Explosion». Tive de comprá-la. Em boa verdade, poderia ter poupado alguns euros acedendo à versão web, ou através duma aplicação para dispositivo móvel, mas perder-se-ia a ironia: ler acerca das potencialidades artísticas e criativas dos novos meios digitais no mais tradicional e analógico dos suportes – o papel.

Com ou sem ironia, trata-se duma temática relevante. Tanto quanto as suas equivalentes quando apareceram tecnologias como a fotografia, o cinema ou – sejamos ousados – os videojogos, e que o tempo acabou por tornar redundantes à medida que se legitimavam as respectivas dimensões artísticas. Mas note-se que no apelativo título se vai mais longe do que a mera apologia duma possível arte latente nestes meios. A expressão que acompanha o já de si barroco «sparked» é «creative explosion», e nas páginas interiores hiperboliza-se com um «creativity unleashed» (pp. 64-65); isto é, mais do que a arte, a arte ao alcance de todos, e todos na peugada da arte.

E o que encontramos nesse dossier1? Aquilo que poderíamos definir como «casos exemplares»: um fotógrafo nova-iorquino que usa o Instagram para fotografar os habitantes da sua cidade, um escritor que decompõe narrativas em tweets com não mais de 140 caracteres, distribuídos por diversas contas, e uma videasta que em vez de filmes faz vines de 6 segundos. Não interessa aqui discutir os méritos estéticos de cada um dos artistas escolhidos, questão secundária para os nossos propósitos. Importante é perceber que nada autoriza o que poderíamos chamar uma «generalização democrática» – como se um hipotético acesso em massa ao piano no século XIX tivesse feito de todos Beethovens ou à guitarra eléctrica no século XX tivesse feito de todos Jimi Hendrixes. As Kodaks e as Polaroids aí estão para demonstrar o que (não) ocorreu no campo da fotografia, aconselhando um prudente cepticismo quanto ao Instagram – por mais que as páginas 77 a 79 do dossier procurem contrariá-lo.

É certo que também não podemos cair na falácia oposta, desvalorizando esse acesso alargado. Se há mais utilizadores de determinado meio, aumenta também a probabilidade de que mais lhe dêem um uso artístico, na acepção estrita da palavra. Mas – para recorrermos a um termo de Vilém Flusser – a esmagadora percentagem será composta por meros «funcionários» da máquina2.

Atenção e Espectáculo.

Ora, é essa a realidade que estes artigos tecno-eufóricos escamoteiam, mesmo que involuntariamente. Como refere uma conhecida «lei» da informática e do design de interfaces, raramente os utilizadores alteram os valores predefinidos. E, por razões análogas, raramente se exploram as funções disponíveis de cada programa ou as potencialidades de cada meio para além das mais comuns – e por comuns entenda-se úteis ou intuitivas, quase sempre ambas, longe de qualquer relação de afinidade com uma eventual dimensão artística. Se assim se preferir, as mais usadas são aquelas que mobilizam o utilizador para uma acção, ou que tão-só mobilizam a sua atenção.

Para que possamos aprofundar esta ideia no mesmíssimo contexto dos dispositivos móveis entronizado por essa edição da Wired, é então necessário regressar ao conceito de atenção e a Jonathan Crary, o autor que melhor o investigou em tempos recentes.

Não sendo possível acompanhar, em tão curto texto, todo o seu percurso intelectual, tomemos – por uma questão de tempo tanto quanto de relevância – apenas o artigo onde esse programa de investigação é formulado pela primeira vez, «Spectacle, Attention, Counter-Memory», de 1989 (Crary, 1989), e o seu mais recente livro-manifesto, 24/7 (Crary, 2013). No artigo, é prestada a devida reverência a Debord3 e ao «espectáculo», conceito que, como insinua o título, faz parelha com o de «atenção»: só há espectáculo se a atenção for mobilizada, o que exige intensidade (ao nível individual) e significância estatística (do ponto de vista colectivo). Em 1967, Debord distinguia ainda entre uma versão «concentrada», nas sociedades totalitárias, e outra «difusa», nas democracias capitalistas. Mas no final dos anos 80 é o mesmo Debord quem propõe, nos Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo (Debord, 1995) – que Crary cita pouco depois da respectiva publicação –, uma nova modalidade, a que chama «integrada», totalizante mesmo que dispensando um regime totalitário. Nas palavras de Crary,

In 1967 there were still marginalities and peripheries that escaped its reign: today, he [Debord] insists, the spectacle has irradiated into everything and has absolute control over production, over perception, and especially over the shape of the future and the past. (Crary, 1989, p. 106)

A sugestão de Debord tem tanto de exagerada – olhando à distância de mais de um quarto de século para esse tempo anterior à queda do Muro de Berlim – quanto de inquietantemente premonitória. Por alguma razão Crary insiste nela neste livro de 2013, desvalorizando o que então eram «triumphalist narratives of globalization and […] facile declarations of the historical end of competing world-systems» (idem, p. 73) e lembrando que

Not by accident, this was also the moment when the vague entity then magically evoked as cyberspace appeared, seemingly out of nowhere. (idem, pp. 73-74)

É bem conhecido o que, nos anos e na produção académica que se seguiram ao artigo de 89, constituiu o resultado do programa de investigação que Crary aí delineara: um minucioso estudo histórico das formas como a atenção se foi constituindo como questão moderna e contemporânea, da percepção à arte, e como foi invariavelmente potenciada por dispositivos tecnológicos como o taumatrópio, os panoramas, a fotografia e ainda o cinema e a televisão. Resumindo, uma arqueogenealogia do espectáculo que, de tanto escavar no passado (mesmo que concentrando-se no século XIX e no início do XX, tão próximos), pode perfeitamente ser lida sem que remeta para o diagnóstico de Debord, iminentemente ancorado no (seu) presente.

Espectáculo e Ecrã.

Com tanto de rigoroso quanto de cauteloso, ou talvez evitando ser redundante com o que já Debord havia diagnosticado, raras vezes e exceptuando breves anotações Crary se aventurou para lá desse período, silêncio que será em parte quebrado com 24/7. No quarto de século que entretanto decorreu, digamos que o silêncio se tornava incómodo. Mesmo que tomemos 1967, ano da publicação de A Sociedade do Espectáculo, como marco temporal – a televisão era já um fenómeno impossível de ignorar –, desde então as mudanças têm sido sucessivas e bem visíveis. Contudo, ainda que possamos declará-las como muito mais profundas, por comparação com essa segunda metade dos anos 60, nelas encontramos uma raiz comum: o ecrã, que, como afirma Iván Zatz em «The Weight of Nightmares», é «[t]he quintessential space of representation of late capitalism» (Zatz, 2005, p. 145). Vemo-lo em embrião nessas primeiras «tecnologias da atenção» estudadas por Crary, a entrelaçar-se de maneira inseparável com o modo de produção capitalista no cinema, e a invadir os espaços privado e do quotidiano na televisão4.

Se estivéssemos ainda em 1967, ou mesmo na viragem da década de 70 para a de 80, momento em que se tornam produtos de consumo duas tecnologias que estendem as funcionalidades da televisão – os gravadores de vídeo e os primeiros computadores pessoais –, esta mini-narrativa de três capítulos seria suficiente para dar conta do papel primordial dos ecrãs enquanto dispositivos de atenção. Sabemos agora muito bem que não chega. Num artigo que reitera essa urgência de um olhar genealógico que nos permita compreender a irresistível ascensão dos ecrãs, propondo chamar-lhe «screenology»5, Erkki Huhtamo destaca o papel fundamental, mas também em permanente mutação, do ecrã televisivo:

during the “interfacial invasion” of the television set, the cultural role and even the “nature” of the TV screen has been constantly changing. It has been affected by changes in technology, social practices, broadcasting policies and design philosophies, but also by the addition of new peripherals like videogame consoles, VCR’s, digital recorders and set top boxes. (Huhtamo, 2004)

E, tanto ou mais importante, «the display of the personal computer has begun to compete with the TV screen for the home user’s attention» (idem). Quase nem é preciso enunciar o que à superfície mudou desde então: mais ecrãs (em número e em «espécie», devido a essa competição), cada vez mais individualizados, fragmentando-se no seu interior em janelas, notificações e caixas de diálogo, e cada vez mais ubíquos, ou, como Huhtamo lhes chama, «nomádicos» (idem).

Ainda nesse artigo, uma pista importante para identificar uma primeira camada menos óbvia que se esconde sob essa superfície: os «pequenos ecrãs», muitas vezes a ponto de o tamanho os condicionar a um uso individual (ou sequencial quando colectivo), são historicamente tão comuns quanto os grandes ecrãs, caso dos panoramas ou do cinema. E ao obrigarem a um recolhimento do espectador, que espreitava para um ecrã que nenhum outro poderia ver em simultâneo, «the persistence of the act of peeping was a symptom of an emerging sense of individuality» (idem).

Desenganemo-nos por isso quanto a uma suposta atomização contemporânea dos sujeitos espectadores resultante da miniaturização dos ecrãs. Essa era já uma experiência típica das peep boxes do século XIX; o cinema limitou-se a complexificá-la ao potenciar o isolamento da atenção – mesmo na eventual presença duma companhia física – e talvez apenas a atitude semi-distraída perante a televisão tenha quebrado ligeiramente este «feitiço».

Temos portanto de redireccionar o nosso olhar. E fazemo-lo identificando duas outras tendências (ou reiterando-as, pois ainda há pouco foram mencionadas) que parecem caracterizar os ecrãs contemporâneos, e que se conjugam para criar uma verdadeira «paisagem ecrãnica», em que estes se diluem num continuum da experiência, talvez confirmando a premonição debordiana dum espectáculo integrado: a sua multiplicação espácio-temporal e a sua fragmentação interna, que não é mais do que uma outra forma de multiplicação.

Ecrã e Vida Digital.

Há cerca de 10 ou 15 anos, uma das palavras que estava na berra – e que terá talvez iniciado a curva descendente com o livro de Henry Jenkins que a ela recorria no título – era «convergência». Dum ponto de vista puramente técnico, o termo descreve de forma correctíssima o que agora já tomamos como inevitável: o triunfo dos formatos digitais, não só nos ecrãs onde este é «nativo» (monitores de computador, telemóveis e outros dispositivos) mas também nos meios que remediou (a televisão, o cinema, e mesmo a fotografia). Se considerada na sua relação ao sujeito, não pode dizer-se que essa convergência esteja totalmente consumada – afinal, ainda há quem vá ao cinema e quem imprima fotografias –, mas dela nos aproximamos a passos largos. Comprovamos esse movimento com o quase desaparecimento, também devido à sua actual omnipresença e banalização, da palavra que outrora havia sido convocada como descritiva dos meios digitais: a «interactividade». A explicação é simples, mas podemos recorrer a Friedrich Kittler, através de um texto de Seb Franklin, para lhe dar uma forma sintética:

We might here recall Friedrich Kittler’s rejoinder – made in his essay “Computer Graphics: A Semi-Technical Introduction” – that while modern graphical computing presents not only a user interface but also images and video that directly reference the lineage of photography, film and television in their appearance and relations, the fading memory of a computer screen populated by white dots on an amber or green background serves to remind us that the “techno-historical roots of computers lie not in television, but in radar.” The crucial aspect of the radar image, of course, is not the visual form it takes but the fact that the user “must be able to address the dots”. (Franklin, 2011, p. 6)

<p class="texto"Isto é, não se trata tanto de interactividade quanto da permanente mobilização do sujeito, tornado «utilizador». Até simples acções como a de de fazer play ou pause a um álbum de fotografias, a de recuar um programa de televisão para o seu início, ou a de apagar uma notificação do telemóvel sem a ler demonstram o quanto somos convocados (é aqui propositada a afinidade semântica com outros tipos de convocatórias) a prestar atenção a todos esses ecrãs e a agir sobre eles de alguma forma. Até mesmo para ignorar as suas mensagens é necessário responder-lhes.

Lev Manovich, Soft Cinema, EUA, 2003. Screenshot do segmento «Texas».
Figura 1. Lev Manovich, Soft Cinema, EUA, 2003. Screenshot do segmento «Texas».

Como enunciámos acima, esta mobilização por parte dos meios digitais é potenciada de duas formas que mutuamente se reforçam. Uma delas, tão bem ilustrada pelo conhecido Soft Cinema, de Lev Manovich (cf. Figura 1), bem como pela instalação de diapositivos Sichtbäre Welt/Visible World, de Peter Fischli e David Weiss6 (em particular na versão de 2003, mostrada na Figura 2), consiste na fragmentação no interior dos próprios ecrãs. De novo Iván Zatz di-lo um modo bastante sintético:

If the screen of the cinema and the television produced a more or less unified field of vision, the computer screen is in fact the quintessential locus of postmodern fragmentation. Almost all software packages have discrete areas (menu bars, scroll bars, data fields, etc) that can be the focus of attention or can be completely disregarded when most tasks are performed. (Zatz, 2005, p. 155)

Figura 2. Peter Fischli e David Weiss, Sichtbäre Welt, Suíça, 2003. Fonte: KunstBlog.
Figura 2. Peter Fischli e David Weiss, Sichtbäre Welt, Suíça, 2003. Fonte: KunstBlog.

Muito se poderia dizer acerca desta fragmentação, cujo primeiro grande marco terá sido o desenvolvimento das interfaces WIMP7 na Xerox PARC, entretanto popularizadas com o sistema operativo do Apple Macintosh e depois com o Microsoft Windows. Será mais simples inverter a premissa e ter em conta o quanto se tem recentemente procurado contrariá-la – de modo geral sem sucesso, pois trata-se apenas de atenuar uma característica central ao funcionamento de todos os actuais sistemas operativos – com programas «distraction free» que monopolizam a totalidade do ecrã e procuram dificultar a alternância entre essa e outras tarefas em mãos. Aliás, não deixa de ser curioso observar a resistência ao multitasking por parte dos utilizadores que sistematicamente maximizam as janelas. Mas essa resistência tende a ser fútil, pois ela poucas vezes, ou só de forma pontual, impede outro tipo de chamadas de atenção: notificações, caixas de diálogo, a navegação nos browsers através de separadores, ou mesmo o simples facto de existirem menus e botões de comando que criam mini-interrupções num fluxo de atenção, um fenómeno que Linda Stone, ex-consultora da Apple e da Microsoft, descreve como «continuous partial attention»8. O cinema, escusado será dizer, parece ser um dos últimos redutos dessa modalidade «moderna» que era o campo unificado e total de visão. Pela minha parte, tenho de confessar que foi assim, saltitando entre tarefas, entre janelas, e entre ecrãs que este texto foi escrito.

A outra forma de mobilização, a que chamámos «multiplicação espácio-temporal», é ainda mais fácil de identificar. Multiplicam-se os dispositivos, que assumem diferentes configurações, cada vez mais portáteis, para melhor se disseminarem pelo espaço – laptops, tablets, telemóveis, aparelhos de GPS, leitores de áudio e de vídeo, … –, e estes convocam-nos também, ora em sequência ora em simultâneo, para que lhes cedamos a nossa atenção durante todo o tempo de vigília. A diferença entre trabalho e lazer deixa aliás de ser relevante se filtrada por este «circuito integrado», como procurava descrever Donna Haraway no seu «Cyborg Manifesto» (1991). Pouco importa que criemos fronteiras artificiais entregando ao computador apenas as tarefas ligadas ao trabalho, e delegando na tablet o lazer. Podem ser modalidades distintas, mas em ambas reencontramos essa competição pela atenção. Ou pense-se no caso dos telemóveis, como bem ilustram as sucessivas encarnações do projecto artístico Today, do CADA, colectivo constituído por Sofia Oliveira e Jared Hawkey. Como o mostram as Figuras 3 e 4, trata-se de uma aplicação de data visualization que transforma em padrões geométricos as chamadas (e também mensagens por SMS) enviadas, recebidas e ignoradas, variando a cor consoante o número de contacto e o tamanho consoante a duração da chamada ou extensão da mensagem. Para cada dia, um padrão diferente. Mas serão os padrões assim tão diferentes de dia para dia? Quão diferente é (ainda) o fim de semana? E, mais importante, o que distingue uma chamada de trabalho de uma chamada de lazer a não ser uma cor no essencial arbitrária, calculada por um algoritmo integrado na aplicação?

Figura 3. CADA (Sofia Oliveira e Jared Hawkey), Today, Portugal, 2013. Fonte: CADA, site oficial da aplicação Today para Android.
Figura 3. CADA (Sofia Oliveira e Jared Hawkey), Today, Portugal, 2013. Fonte: CADA, site oficial da aplicação Today para Android, Disponível em http://www.todaymobileapp.com/.
Figura 4. CADA (Sofia Oliveira e Jared Hawkey), Today, Portugal, 2013. Fonte: CADA, site oficial da aplicação Today para Android.
Figura 4. CADA (Sofia Oliveira e Jared Hawkey), Today, Portugal, 2013. Fonte: CADA, site oficial da aplicação Today para Android, Disponível em http://www.todaymobileapp.com/.

Vida Digital e Atenção: Sem Interrupções.

É esta a altura em que devemos regressar a Jonathan Crary, focando-nos finalmente em 24/7. A expressão que dá título ao livro já é também familiar aos falantes da nossa língua, pelo que não precisamos de nos demorar em definições. Tal não impede que se assinalem alguns pormenores, em particular no que respeita à ligação do indivíduo aos ecrãs, ou, nas palavras de Crary,

the array of forces that esteem the individual who is constantly engaged, interfacing, interacting, communicating, responding, or processing within some telematic milieu […] amid the dissolving of most of the borders between private and professional time, between work and consumption (Crary, 2013, p. 15)

Isto, sublinha,

is not some transformation of an earlier work-ethic paradigm, but is an altogether new model of normativity, and one that requires 24/7 temporalities for its realization. (idem, p. 15)

Dois aspectos merecem ser destacados. Por um lado, a ideia de um continuum temporal «monótono», que já não é nem o tempo cíclico das estações do ano nem sequer essa circularidade mais curta da alternância entre dias de trabalho e de descanso, mas que ainda menos é o tempo linear da História e da vida enquanto projecto:

Of course, these earlier distinctions (the individual days of the week, holidays, seasonal breaks) persist, but their significance and legibility is being effaced by the monotonous indistinction of 24/7. (idem, p. 30)

Por outro, a progressiva indiferenciação entre humano e máquina, que para Crary claramente significa uma «maquinização» do homem:

One seemingly inconsequential but prevalent linguistic figure is the machine-based designation of “sleep mode.” The notion of an apparatus in a state of low-power readiness remakes the larger sense of sleep into simply a deferred or diminished condition of operationality and access. It supersedes an off/on logic, so that nothing is ever fundamentally “off” and there is never an actual state of rest. (idem, p. 13)

O retrato é, reconheçamos, ainda mais sombrio do que esta breve descrição deixa perceber. O único refúgio, mencionado no subtítulo do livro e cuja presença no pensamento ocidental Crary analisa magistralmente, é o sono9, e mesmo o sono está à beira de ser colonizado pela (ir)racionalidade económica10, instaurando finalmente a «sociedade de controlo» receada por Deleuze.

Não deixa contudo de ser significativo que praticamente a única nota de esperança, tão isolada que quase se pode não dar por ela, surja na passagem onde refere que

If one’s goal is radical social transformation, electronic media in their current forms of mass availability are not useless – but only when they are subordinate to struggles and encounters taking place elsewhere. (idem, p. 121)

Desconhecemos como podem os meios electrónicos – que não são meros instrumentos, como sabemos desde Heidegger – e respectivos ecrãs ficar ao serviço desse objectivo utópico, e Crary também nada mais adianta além palavras acima citadas. Podemos contudo imaginar que, entre uma indiferença distraída e uma intencionalidade subversiva, à maneira da «temporary autonomous zone» de Hakim Bey (cf. Bey, 1991), seremos capazes, como Perseu com a cabeça da Medusa, de usar os ecrãs evitando o fascínio do seu brilho.

Referências

AAVV (2014). The Art Phone Explosion. Wired, Agosto, 2014, 62-81.

Bey, H. (1991). TAZ: The Temporary Autonomous Zone, Ontological Anarchy, Poetic Terrorism. Consultado Ago 22, 2014. Disponível em http://hermetic.com/bey/taz_cont.html.

Crary, J. (1989). Spectacle, Attention, Counter-Memory. October, 50, Outono de 1989, 96-107.

Crary, J. (2013). 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. Londres e Nova Iorque: Verso.

Debord, G. (1995). Comentários sobre A Sociedade do Espectáculo: Prefácio à Quarta Edição Italiana de «A Sociedade do Espectáculo. Lisboa: Mobilis in Mobile.

Franklin, S. (2011). Is Attention Really Immaterial? Visual Culture after Post-Fordism. World Picture, 6, 1-10.

Haraway, D. (1990), A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. In Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, 1990, 149-181.

Huhtamo, E. (2004). Elements of Screenology: Toward an Archaeology of the Screen, Iconics: International Studies of the Modern Image 7, 31-82. Consultado Ago 22, 2014. Disponível em http://gebseng.com/media_archeology/reading_materials/Erkki_Huhtamo-Elements_of_Screenology.pdf.

Palmer, D. (2003). The Paradox of User Control. Consultado Ago 22, 2014. Disponível em http://hypertext.rmit.edu.au/dac/papers/Palmer.pdf.

Zatz, I. (2005). The Weight of Nightmares: Small Screens, Social Space, and Representation in Contemporary Capitalism, Situations: Project of the Radical Imagination, I (1), 143-159.

Notas

1 Muito adequadamente, nas páginas iniciais encontra-se um breve artigo intitulado «Immerse Yourself: Why the Smartphone Means a Golden Age for Journalism» (p. 19). Num outro mês, os temas do dossier e do artigo curto poderiam ter trocado as respectivas posições.

2 Assumimos uma oposição algo simplista entre aqueles que detêm alguma capacidade de controlo do meio e aqueles que, não a possuindo, são os «funcionários». Mas se espaço houvesse para aprofundar essa oposição, veríamos que também pode ser falaciosa por via da ilusão de controlo da tecnologia. Num artigo que se inspira igualmente na obra de Crary, Daniel Palmer adverte para esta estratégia tecno-utópica associada a uma suposta capacidade de personalização (por oposição a condicionamento) dos meios: «The paradox of user control, in fact, becomes that of the illusion of choice within which the user is offered up for a form of soft domination. […] customisation of the media imaginary may be seen as more than a “neutral” technical effect enabled by electronic and digital media, but rather as a mode of media corresponding to broader post-industrial market logics.» (Palmer, 2003, p. 161)

3 Também a Benjamin e mesmo a Bergson, que aqui teremos de descurar.

4 «The repetitive nature of the serialized narrative enables television to correspond to the routinized stability of the viewer’s everyday experience in ways seldom, if ever, available to film – in fact, watching television does become part of the personal routine of everyday life.» (Zatz, 2005, p. 151)

5 Mas que curiosamente não faz mais do que uma breve referência a Jonathan Crary.

6 Agradeço a Ana Gandum, doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações na FCSH-UNL, o ter-me dado a conhecer esta obra, no contexto do seminário «Arte e Tecnologia», que lecciono nesse doutoramento.

7 Windows, Icons, Menus, Pointer.

8 Apesar da sua relevância, é uma expressão que não tem sido acolhida pela academia, talvez por pairar numa zona cinzenta entre a psicologia, os estudos sobre tecnologia e as ciências da educação. Uma busca no Google Scholar devolve resultados muito magros, já para não mencionar a sua ausência na obra de Jonathan Crary. Até mesmo «attention economy», muito por via dos estudos sobre publicidade e outras formas de persuasão, tem merecido melhor sorte.

9 «Sleep is the only remaining barrier, the only enduring “natural condition” that capitalism cannot eliminate.» (Crary, 2013, p. 74)

10 E, talvez ainda mais depressa, o sonho, numa versão menos hi-tech do que em muitos contos de ficção científica de meados do século XX: «Even though dreaming will always evade such appropriation, it inevitably becomes culturally figured as software or content detachable from the self, as something that might be circulated electronically or posted as an online video.» (idem, p. 98)

Go to top