Ao procurar definir o que é a cibercultura, estamos simultaneamente a referir-nos a um conjunto de práticas e às reflexões teóricas que procuram compreendê-la. Ambas se influenciam mutuamente — o que pode de resto ser confirmado pelo carácter lúdico de muita da produção que se assume como teórica –, o que não impede uma «arrumação da casa» que é aqui experimentada, cruzando três eixos de intervenção (o espaço, o corpo, a cultura) com duas modalidades, provisoriamente classificadas como «offline» e online».
Publicado na Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 28 («Tendências da Cultura Contemporânea»), Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 28 («Tendências da Cultura Contemporânea»), Lisboa, Relógio d’Água, 2001, pp. 319-332.
O problema vem de longe: quando Aristóteles, na sua Poética, procurava determinar aquilo que permitia julgar o valor de uma peça trágica, já a arte se movia mais depressa do que a teorização sobre ela. Exemplo que não deixou de repetir-se até hoje: os factos e as acções desde sempre parecem levar um avanço relativamente às teorias que procuram explicá-los. Num momento em que «velocidade» e «aceleração» são das palavras mais utilizadas para caracterizar o tempo actual, não será de estranhar que também essa distância se dilate. O que é mais uma razão para que nos preocupemos, pelo menos quando o objectivo é compreender as implicações — em particular as culturais — das novas tecnologias à medida que estas «evoluem» e se disseminam.
Não é sequer preciso iniciar o exame a algumas das facetas mais visíveis da tecnologia para que o problema se manifeste: basta pegar na palavra «cibercultura» e tentar definir o seu significado. Artigos e volumes vão-se sucedendo, na sua maioria de origem anglo-saxónica e quase invariavelmente com o costumeiro prefixo «ciber-», fumo de um inegável fogo — caso contrário, como explicar tanto ruído em torno do conceito se a sociedade e a cultura contemporâneas não fossem já (e definitivamente) cyber? Tal como ocorreu com um outro conceito que continua a adiar o seu declínio, o de «pós-moderno», a grande confirmação é-nos dada quando a palavra sai do círculo restrito da produção académica e entra no quotidiano, do manual de sobrevivência para leigos ao livro humorístico para iniciados1. Ao menos esses são modestos nas suas pretensões: explicam a Internet como uma rede de enorme complexidade, como se se atassem aleatoriamente os tentáculos de uns bons milhões de polvos, advertem que não vale a pena recear a (ou, em alternativa, que é escusado ansiar pela) teledildónica, pelo menos nos próximos trinta anos, dizem que se está no ciberespaço sempre que se paga uma conta telefónica através de uma caixa Multibanco. O que é verdade — superficial, mas nem por isso menos verdade.
No melhor dos mundos, a produção académica começaria, desde logo, por demarcar-se dessa superficialidade. Infelizmente, e ao encontro do que advertiu Umberto Eco, é impossível fazer a «teoria da próxima quinta-feira» quando tudo muda a um ritmo ainda mais acelerado do que na época em que o conhecido autor italiano procurava caracterizar a cultura dos mass media. Ainda assim, é já possível traçar alguns pólos em torno dos quais o trabalho reflexivo se tem fixado. Plagiando uma das primeiras e por isso mais conhecidas colectâneas de ensaios sobre o tema, Cyberspace, cyberbodies, cyberpunk, de Mike Featherstone e Roger Burrows, podemos categorizar a produção académica em torno desses três eixos. Como condição fundadora a carecer de análise, o advento de um novo espaço sobre o qual tudo o mais assenta: quais são afinal as inovações tecnológicas responsáveis pela «era cibernética» e em que medida a retroacção, o input e o output e — acima de qualquer outro conceito — o controlo são aquilo que
determina a nossa condição contemporânea? Sobre esse território, os seus habitantes, em particular o que, sendo ainda matéria, permite «instalá-los» num (porventura «fundi-los» com um) espaço imaterial: o corpo. Ou a ausência dele. Por fim, a cultura strictu sensu, mesmo tendo em conta que não só qualquer das dimensões anteriores é já iminentemente cultural como devemos ser mais abrangentes do que Featherstone e Burrows, pois nem tudo o que é cyber tem por força de ser punk.
1. Paisagem.
Na categoria «ciberespaço» temos antes de mais toda a reflexão que se orienta em torno das condições que permitiram que o imaterial eclodisse e triunfasse. Falamos naturalmente das reflexões sobre a técnica (ou tecnologia) enquanto algo que, saindo de uma posição oculta, ocupa agora o primeiro plano no palco da realidade, como um protagonista que o foi desde sempre mas que só se revela no penúltimo acto. Antes ainda de o prefixo «ciber-» ter sido resgatado a Platão por Wiener, já autores como Ernst Kapp, Spengler ou Jünger faziam da técnica uma preocupação central. Sob as novas condições, a reflexão não tem abrandado — o tom é porventura menos pessimista, mas o estilo e o espírito mantêm-se. Com a novidade de já não fazer sentido, excepto no caso de análises retrospectivas, pensar numa técnica que não seja ainda tecnologia, isto é, que não resulte do casamento da poiesis sobre o mundo com a linguagem — primeiro analógica mas logo digital — da teoria da informação. A sua presença é inevitável, ainda que se possa optar entre duas modalidades: deixar que a tecnologia triunfe e contribuir activamente para esse triunfo — offline no primeiro caso, online no segundo.
Mantemo-nos offline quando, um pouco à maneira da relação que Don Ihde classificava como «interpretativa»2, nos conservamos à margem da tecnologia, ficando esta como fundo no qual interagimos. Utilizar as facilidades do Multibanco ou usufruir das redes apenas como forma de aceder — mais ou menos activamente — à informação aí disponível são, até prova em contrário, modos «clássicos» de recorrer à tecnologia. Entre o comboio, o automóvel, o telefone e a World Wide Web, quando utilizada exclusivamente desta forma, as diferenças são essencialmente de grau, por mais que cada uma destas tecnologias tenha trazido alterações monumentais na vida social3. Neste sentido, as cibertecnologias impõem-se acima de tudo como espaço de controlo, tanto mais eficaz quanto mais as incorporamos na nossa experiência quotidiana. A prova definitiva dá-se, como a um tempo aconteceu com a electricidade e como agora ocorre com o uso generalizado dos telefones celulares, quando nos interrogamos como foi possível alguém ter vivido sem elas.
Não é contudo habitual falar-se de ciberespaço perante situações como as descritas acima. O «salto» para o online ocorre, em vez disso, no momento em que tomamos consciência dele como uma espécie de duplo do espaço físico no qual podemos entrar e sair. Ou, quando consumado no último grau, como espaço no qual é possível (e desejável) entrar mas do qual é escusado sair. Reside aqui toda a diferença entre fazer uma pesquisa na WWW, acesso pontual e orientado para um objectivo mais ou menos definido, e «navegar» à deriva, passar horas numa chat room ou numa MUD, ou, limite por agora apenas ficcional, confundir a realidade com uma representação imersiva multi-sensorial, como nos filmes Matrix ou eXistenZ. Aproximações ainda muito incipientes, as «viagens virtuais» dos parques de diversão, as técnicas de navegação 3D e, exemplo privilegiado, os videojogos (com a sua actual tendência para a fusão de géneros) são os paradigmas daquilo que se presume possível num futuro breve.
Tal como continuará a ocorrer ao longo deste artigo, é necessário fazer notar que a oposição entre offline e online tem uma função puramente heurística. Não há qualquer diferença de «essência» entre tecnologias interpretativas ou offline e tecnologias amplificadoras ou online. Como o próprio Don Ihde assinalava, o elemento determinante é a relação entre a tecnologia e o utilizador, o que, para aquilo que aqui nos interessa destacar, pressupõe por um lado a reformulação da sequência temporal subjacente a esta dicotomia (que em Ihde vai habitualmente da amplificação para a interpretação) e por outro a necessidade «conservadora», ao arrepio de toda uma linha de pensamento cujo início costumamos atribuir a Nietzsche, de estabelecer uma diferença (também ela heurística) entre o real e a sua representação.
No primeiro caso, aquilo que se verifica é a progressiva disseminação (instalação?) da tecnologia. Do ponto de vista da nossa familiaridade com ela, integramo-la e, muito mcluhanianamente, fazemos dela uma extensão (aqui, nas palavras de Ihde, a relação passaria de hermenêutica a amplificadora). Do ponto de vista da própria tecnologia a sequência fica, mais do que invertida, baralhada: onde antes tínhamos consciência de estar a usar algo «outro», nem mundo nem sujeito-utilizador (precisando por isso de «ligar-nos»), passamos a tomá-la como algo que é parte do mundo (a relação hermenêutica de Ihde), que é parte de nós (relação amplificadora), ou, no limite, tudo isso em simultâneo, em qualquer dos casos firmando-nos na crença ilusória de não ter sido necessário abrir parêntesis no modo offline que é o nosso quotidiano. Naturalmente, o que queremos dizer é que offline e online tendem com o tempo a confundir-se, num processo — ainda que não consciente, nem mesmo por parte da técnica — de amnésia. É por isso que, para evitar o que pode ser provisoriamente designado como «insanidade berkeleyana»4, a reflexão sobre as tendências da tecnologia deve a todo o momento — e cada vez com maior pertinência — postular a distinção, por ténue que seja neste momento, entre o real «em bruto» e a «software-softness» da técnica. Que a demanda pela fronteira entre esses dois universos é tarefa vã não invalida que se possa assumir uma perspectiva que permita dar conta de como a tecnologia sorrateiramente se foi sedimentando — num sentido tão geológico quanto possível. É isso que torna imperativa uma «arqueo-genealogia» da técnica que, a níveis muito distintos, pode ser ilustrada pelo «Dead Media Project», pela tentativa de descrição das origens dos actuais modelos de interface, como faz Lev Manovich em «A vanguarda como software» ou, numa abordagem artística em vez de teórica, como é o caso daqueles que recorrem a uma «arqueologia» dos media como fonte de inspiração5.
Não há nenhuma novidade nesta perspectiva — Baudrillard tornou-a mesmo entediante com a ideia de um hiper-real simulado que se antecede ao real. A existir alguma novidade, ela consistirá antes na menorização do valor ontológico desse antagonismo entre real e representação em favor de uma abordagem mais funcional, na qual cada um dos termos (independentemente do nome que lhes é atribuído e, mais ainda, da relação de precedência entre eles) tem valor apenas quando integrado em cada objecto e contexto de análise. Proposta conservadora, como alegámos acima, mas temperada por uma dupla consciência: de que nem o que é hoje o real tecnologicamente enhanced sempre assim foi, que as contingências nos poderiam ter conduzido a uma situação diversa, e ainda de que são por vezes os olhares mais microscópicos e parcelares (como os mencionados) aqueles que melhor permitem dar conta desse processo.
2. Habitantes
Quando nos abstraímos da técnica como fundo e procuramos atentar no seu alvo preferencial, aquilo que encontramos — e portanto o objecto a analisar — é o indivíduo, quase exclusivamente o seu corpo. Procurando reformular o velho provérbio que menciona a necessidade como mãe da invenção, e mesmo tendo em conta todos os problemas que podem resultar do simples uso de termo tão fugidio quanto o de «necessidade», podemos dizer que técnica e corpo se harmonizam tão bem porque, da mesma maneira que o corpo precisa da técnica para transcender as suas limitações, a técnica desde o início precisou de um corpo que pudesse «parasitar». Como todos os truísmos, este torna-se inútil quando levado demasiado à letra: no limite, pedra lascada e nanotecnologia diluir-se-iam numa grande equivalência. Também para este problema os «estudos ciberculturais» depressa encontraram uma solução, um achado tanto na sua simplicidade quanto na sua ambiguidade, tanto mais quanto não parece vislumbrar-se nenhum conceito alternativo. Falamos naturalmente do conceito de cyborg, verdadeira palavra de ordem que, a algumas décadas de distância, apadrinhou a própria palavra «cibercultura».
Como bons nominalistas, não podemos deixar de, por um lado, separar a palavra daquilo que é suposto denotar, e, por outro, advertir para a provável inexistência de um universal de que ela seria mediador ao conhecimento sensível. Abreviando: «cyborg» é antes de mais uma palavra sonante, que continua a sê-lo mesmo depois de sairmos dum estado de espanto infantil6, e a sua maleabilidade conceptual dá-lhe suficiente latitude para abarcar uma diversidade de fenómenos a que dificilmente reconheceríamos unidade se esta não fosse muito anterior. «Corpo» era o conceito que antes servia objectivos similares. Aprofundemos um pouco esta argumentação. Falar de cyborg é traçar, antes de tudo, e tirando todo o proveito possível duma indeterminação na linha cronológica, uma oposição entre uma era «pré-cyborg» e uma era «daqui a pouco», «quase», «agora», e finalmente «pós-cyborg»7. O importante aqui é que se tenha de postular um «antes»: nem sempre a técnica, por mais que consistisse em extensões dos órgãos dos sentidos e dos órgãos motores, teve essa capacidade de reproduzir os processos de feedback que marcaram uma oposição fundamental entre máquina e organismo8. De maneira equivalente a muitos outros «novos», de que «modernidade» é o que mais efeitos produziu, os valores descritivo e performativo do conceito confundem-se, mas de nada vale negar todo o conjunto de possibilidades abertas pelo mesmo movimento que, um pouco acima, descrevemos como a transformação da técnica em tecnologia.
Ora, é ao atentarmos nesse mesmo «antes» que podemos, simultaneamente, perceber o abuso do conceito e, sem que haja qualquer paradoxo, a sua inevitabilidade. A ideia de corpo não só antecede a de cyborg como se prolonga nela, mesmo que os mais radicais, como Stelarc, digam que tal corresponde à sua obsolescência. Só que, em todos os sentidos (e daí o abuso), recorrer a esse «guarda-chuva» equivale a inaugurar (compreender, se o objectivo é teórico) um conjunto de práticas que estavam interditas ao mero «corpo». Reintroduzindo, desta vez sem tanta preocupação de profundidade, a oposição acima proposta entre offline e online, algumas ilustrações permitem esclarecê-lo. Um cyborg offline é aquele em que o corpo ainda resiste como algo sólido, material. É o cyborg de Donna Haraway, que aderiu ao tele-trabalho, que apagou as diferenças funcionais entre masculino e feminino, que procura diluir todo um conjunto de pares hierarquicamente ordenados inscritos na estrutura económica (patrão/empregado; Primeiro Mundo/Terceiro Mundo, etc.), mas que resiste a abandonar aquilo que lhe assegura uma unidade (perante si mesmo) e uma individualidade (perante o outro). Aliás, reformula-se a si mesmo apenas para melhor assumir a sua individualidade, o que não ocorria se, fruto das circunstâncias, ocupava um dos termos inferiores destas oposições. É também o cyborg de Sandy Stone, que assume (mais) livremente uma multiplicidade de personae, bastando-lhe digitar um comando para sair desse mundo ficcional e regressar à (in)tranquilidade do mundo real. É ainda o cyborg de Neuromancer, apesar da ressaca que sobrevém se o jack in não é feito com a regularidade devida.
Os cyborgs online são muito mais subtis. Não deixam ressaca, mas também não deixam o indivíduo intacto. Não se pretende com isso dizer que a modalidade offline é totalmente inócua. A nível social, por exemplo, a nova realidade descrita por Donna Haraway é profundamente distinta, tanto a nível político-económico como individual, do modo moderno de produção de bens e de sujeitos. A diferença está na materialidade, que tem de transformar-se ou desaparecer no momento em que se opta pelo online. Exemplos não existem. São por enquanto puramente ficcionais, e tomar parte pela sua possibilidade num qualquer futuro é já trair uma posição que pouco tem de científica e muito de ideológica,
independentemente de a sua descrição, mormente por via da ficção, poder servir como «revelador». Um pouco ao lado do universo ficcional, mas ainda dele demasiado próxima, a inteligência/consciência artificial tornada realidade é uma ilustração possível desta categoria de cyborg, que se vê contudo constantemente negada tanto pela teoria9 quanto pelos parcos resultados práticos — agentes e avatares incluídos –, tendência que nem o paradigma das redes neuronais tem conseguido contrariar. Uma simbiose perfeita entre máquina e organismo seria uma outra hipótese, mas dificilmente achamos legítimo dizê-lo de aproximações como é o caso da inserção de nano-próteses: tanto corpo e tão pouca tecnologia! Uma alternativa é atribuir um grau equivalente aos dois tipos de realidade já referidos: a «sólida» e a puramente informacional. Nesse sentido, a minha «versão material» teria o mesmo valor de uma personagem que assumo exclusivamente no espaço informacional, desde que eu a assumisse de forma consequente por um período de tempo suficiente para produzir efeitos10. Mas — e sem pensar por enquanto nas consequências políticas de uma tal decisão, que quando muito teriam cabimento na próxima secção deste artigo — isso seria o mesmo que multiplicar desnecessariamente o número de entidades existentes, ao mesmo tempo que se criaria uma nova dualidade com impasses ainda mais graves do que a do famoso mind-body problem: uma espécie de corpo permanentemente offline cuja alma seria a única componente a ficar online. E se Occam não tivesse sido suficientemente eloquente, bastaria recordar a solução popperiana: a possibilidade de uma transferência recíproca de efeitos entre os mundos objectivo, intra-subjectivo e inter-subjectivo não autoriza que os confundamos.
3. Identidades
Mesmo admitindo a prevalência das questões ligadas ao corpo sempre que o tema em causa são as novas tecnologias, nenhuma descrição daquilo que esta trouxe ficaria completa sem uma análise de dimensões mais globais. Trocando em miúdos, se já pouco há a argumentar relativamente ao uso do prefixo «ciber-», tudo fica por dizer quando ele é aposto ao substantivo «cultura». E pouco se pode fazer — excepto confrontarmo-nos com o problema — quando surge toda uma barragem de questões a que parece faltar o centro de gravidade. Será a «cibercultura» verdadeiramente uma nova forma de cultura (qualquer que seja o sentido que se dá à palavra)? Existem formas de expressão (nomeadamente artísticas) que sejam especificamente cyber? A cultura cyber é um análogo da cultura pop (uma subcultura, portanto) ou, mesmo que em diferentes graus consoante os grupos sociais, toda a cultura é já cyber? Há grupos, comunidades ou mesmo sociedades cyber? Se sim, possuirão elas um espaço público, formas de organização, regras e condicionantes — em suma, uma ética e uma política? Que relações entre esse mundo cyber, caso ele exista, e o quotidiano, se é que não se fundiram já? Que lugar para o sujeito nesse mundo? Globalização (económica, cultural, etc.) e cibermundo são duas faces da mesma moeda ou fenómenos distintos, ainda que cada vez mais interligados? É possível falar-se de grupos hegemónicos ou a hegemonia é puramente a da técnica (se é que há de todo relações de tipo hegemónico, pois até isso está ainda por determinar)? Em qualquer dos casos, qual a margem de manobra do sujeito para contornar ou mesmo combater essa hegemonia?
As questões são muitas, o que dificulta qualquer tentativa de abarcar o seu âmbito numa unidade que seja pelo menos mais descritiva do que a ainda nebulosa palavra «cibercultura». Todas pressupõem uma mudança, assim como efeitos que já são ou depressa serão visíveis, e se é possível atribuir-lhe essa unidade, é apenas porque, à partida, se postula uma causa-mor, nem mais nem menos do que a própria tecnologia. É essa por enquanto a força dos estudos ciberculturais, mas na condição de o valor de tal causalidade ser similar ao que é dado por Mark Poster quando afirma que «a Internet é mais um espaço social do que uma coisa; os seus efeitos são muito mais como os da Alemanha do que os de um martelo. O efeito da Alemanha nas pessoas que a habitam é fazer delas alemães […]; o efeito dos martelos não é transformar as pessoas em martelos, ainda que os heideggerianos e outros possam discordar, mas sim cravar pregos na madeira»11. O que de alguma maneira acaba por confirmar aquilo que foi dito logo no início deste artigo, mas agora com novos elementos: o espaço — como o território alemão — existe; os habitantes — ou ao menos os seus corpos — estão disponíveis para se deixarem moldar pela técnica, mas nada disso seria relevante se daí não resultasse algo de novo. E o que daí resulta é de uma ordem mais complexa, quase autónoma, exteriorizando-se permanentemente em práticas e discursos de que os indivíduos são agentes. E sem querer damo-nos conta de que nos estamos a referir a uma cultura.
Como frequentemente ocorre, há uma resposta fácil, demasiado fácil, de unificar todas estas questões sob um mesmo tecto, e que neste caso específico consiste em recorrer à ideia de comunidade. Extintas as comunidades pré-modernas — alguém que tenha observado tais sociedades teria alguma vez visto uma Gemeinschaft em estado puro? –, esses paraísos perdidos com a eclosão da consciência moderna poderiam agora ser reencontrados, ainda que segundo um novíssimo tipo de solidariedade. Em vez da partilha de um mesmo espaço geográfico, a existência de uma comunhão de interesses disseminada globalmente. Da condição sine qua non, espécie de massa crítica a que se sucedeu uma reacção em cadeia, já McLuhan falava, caracterizando-a simultaneamente como implosão do mundo e como extensão-explosão do mais eléctrico dos órgãos, o cérebro. Única correcção a fazer: no mundo digital há não uma só mas sim uma pluralidade de «aldeias globais», cada uma com o seu totem.
A melhor forma de escapar à reificação do conceito de comunidade é simplesmente submetê-lo a uma demolidora crítica, tal como a que pode ser lida na introdução de Steven J. Jones à colectânea de textos por ele organizada e intitulada Cybersociety. Solução demasiado radical que nem o próprio autor chega a assumir, ou não tivesse a mesma colectânea recebido o subtítulo «Computer Mediated Communication and Community»12, e se assim ocorre é porque há pelo menos uma riqueza heurística na ideia de comunidade que pode ser aproveitada, desde que abordada com o distanciamento adequado.
Com efeito, há uma série de fenómenos pertencentes ao domínio do virtual13 que se vêem mais facilmente explicados se se recorrer à ideia de comunidade. Tome-se apenas o exemplo da Usenet. O seu equivalente mais próximo é o do jornal de parede, mas em nenhum jornal de parede os temas chegam a ser tão restritos nem o seu público (potencial ou efectivo) tão disseminado. A capacidade de participação é igualmente potenciada — qualquer indivíduo pode, em teoria, responder ou lançar um novo assunto para discussão –, a tal ponto que isso cria contra-efeitos de inibição (caso dos lurkers, que acompanham as discussões sem nelas participarem) e de exclusão (formas de fechamento dos grupos, nomeadamente através de «rituais de iniciação» ou do uso de gírias que tocam o esotérico14). O que quer dizer que um fórum da Usenet pode ser uma espécie de comunidade, por vezes (e nem é necessário ser demasiado exclusivista) criando as suas próprias normas, os seus discursos específicos e as suas formas de organização e de hierarquização simbólica.
Ainda que seja discutível uma aplicação tão directa deste conceito a outro tipo de práticas como o uso da World Wide Web para pesquisa de informação ou a produção de objectos artísticos de índole tecnológica, se não mesmo baseados na rede, ainda assim a lógica da identidade e da diferença continua a poder ser aplicada. Não se pesquisa a Web sem deixar rasto, pelo que o perfil de determinado utilizador pode ser traçado com alguma facilidade. Nem por isso aqueles que apresentam um perfil similar constituem uma comunidade — a probabilidade de se encontrarem por acaso é quase nula, e a procura deliberada de um «duplo perfeito» está longe de ser a actividade mais popular15 –, mas o gestor de uma base de dados agrupa-os como elementos de uma mesma categoria. A comunhão de características é uma realidade enquanto efeito estatístico, ainda que esteja em falta a mutualidade decorrente do conhecimento desse facto. No caso da prática artística, conceitos já sedimentados como os de «escola» e «estilo» podem adquirir um novo sentido, mesmo que venha a ser invalidada a hipótese de haver uma espécie de «essência» da arte tecnológica.
Uma outra perspectiva possível é a de repensar a própria relação entre comunidade e sociedade, de que resulta uma inflexão ético-política na investigação cibercultural. Em vez de se opor uma Gemeinschaft a uma Gesellschaft, procura averiguar-se em que medida 1) as comunidades espelham ou não a estruturação social do universo quotidiano, ou 2) a própria sociedade se vê modificada pela existência de tais comunidades a tal ponto que as fronteiras entre os dois domínios se esfumam. Joga-se aqui de novo a diferença entre offline e online. A provar-se que as comunidades virtuais são como sociedades em menor escala, encontrar as regras que permitem um bom funcionamento destas deixa de ser o objectivo de uma curiosidade descritiva para passar a alvo de uma intenção ético-normativa, se não mesmo controladora16 — o offline impõe-se ao online, com a justificativa de o segundo ser apenas um caso especial do primeiro. A pressuposição oculta no segundo tipo de análises, na nossa opinião mais produtivas, consiste na crença de que toda a sociedade se vê modificada pelos usos das tecnologias, de pouco servido as atitudes conservadoras. Inevitavelmente, o online triunfará, levando como despojo de guerra o offline na sua totalidade, capturado no momento em que padece da mais contemporânea das doenças, a obsolescência.
Seria inadequado terminar esta breve resenha do «estado das coisas» na cibercultura sem desfazer a confusão deliberada entre esta enquanto prática e o que chamámos «estudos ciberculturais», reorientando a nossa atenção para estes. Numa disciplina em que a constituição de um cânone é praticamente um paradoxo, pelos motivos com que iniciámos a nossa reflexão, a contrapartida é a de se navegar quase à deriva num meio irregular, repleto de altos e baixos. Numa mesma colectânea — os grandes tratados não abundam, os readers são a regra — sucedem-se artigos medíocres e verdadeiros «ovos de Colombo» de rigor e acutilância, mas nem uns nem outros escapando a alguma superficialidade.
Uma hipótese de trabalho é a de que tal superficialidade reside menos na fraca qualidade dos métodos ou das reflexões do que na novidade do objecto a analisar, trate-se de reflexões predominantemente teóricas ou de pesquisas empíricas17. Quando o número daqueles que aderiu activamente à cibercultura — em qualquer dos sentidos, prático ou teórico — é ainda reduzido, quando a «academia» persiste no seu conservadorismo, a tentação de se substituir a profundidade pela mera descrição ou, em alternativa, pelo «estilo» é grande.
Dentro em breve, com a disseminação do online — e apesar da reserva que mostrámos acima relativamente certas visões demasiado tendenciosas do corpo18 — correr-se-á um risco oposto. Pois a cibercultura oscila entre dois escolhos, o demasiado invulgar e o demasiado corriqueiro, a atracção de feira e o já-visto (e a agravá-lo, a rapidez com que se passa do primeiro ao segundo). Demasiado exótico ou esotérico, e ainda não suficientemente digno da palavra «cultura». Demasiado comum, e já não é cyber. Perante um panorama como este, não é de estranhar que os poucos clássicos que a reflexão sobre a cibercultura gerou sejam casos em que se procura escapar ao estilo académico, optando por uma abordagem e por uma linguagem híbridas, se não mesmo lúdicas, entre o ensaio e a ficção: The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, de Allucquère Rosanne Stone, seguindo-se, a uma distância significativa, Doom Patrols, de Steven Shaviro, simultaneamente trabalhos de grande fôlego e colectâneas de exemplos fragmentários, obras de análise e paradigmas da própria cibercultura, o que quer que ela seja.
Bibliografia
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2000 «Entre Anjos e Cyborgs», Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 28 («Tendências da Cultura Contemporânea»), Lisboa, Relógio d’água, pp. 157-171.
1995 A Vida no Ecrã: A Identidade na Era da Internet, Lisboa, Relógio d’água, 1997.
Notas:
1 Estão já editados em português alguns volumes da série ilustrada «…for beginners», incluindo um volume sobre ciberespaço (Ciberespaço para Principiantes, de Joanna Buick e Zoran Jevtic, com edição portuguesa da Dom Quixote), ao lado de outros onde se incluem temas como a pós-modernidade e autores com Einstein e Derrida. Com altos e baixos, é inegável que nesta colecção se encontram interessantíssimas e irónicas introduções àquele que vai sendo o cânone dos estudos universitários. De novo no campo mais estrito da «cibercultura», pode também mencionar-se Cyberculture, de Daniel Ichbiah, publicado pelas edições Anne Carrière em 1998.
2 A oposição de Ihde é aliás mais rigorosa do que a versão quase equivalente que aqui propomos, mas por isso mesmo menos evocativa: falamos de offline quando as novas condições tecno-sociais se mantêm essencialmente com ambiente, em online quando há uma ligação «quase-corporal» (amplificadora ou de embodiment) à tecnologia. Teremos oportunidade de aprofundar cada um dos casos à frente.
3 Até mesmo nos hábitos de namoro, como o faz notar Allucquère Rosanne Stone num curto artigo intitulado «Recordações da Unidade, ou Chegou a Idade da Máquina e Tudo o que Ganhei foi esta Horrível T-Shirt» (Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 25-26, Lisboa, Cosmos, pp. 69-72).
4 Seria um abuso colar esta ideia ao nome de Nietzsche, que, pelo menos nesse aspecto, sempre se mostrou suficentemente lúcido.
5 Tanto o artigo de Manovich quanto uma referência a alguns destes projectos artísticos, feita por Erkki Huhtamo, estão disponíveis no n.º 28 da Revista de Comunicação e Linguagens (Lisboa, Relógio d’água, 2000).
6 Pode ser uma simples questão de «som e sentido», mas esta é definitivamente uma das palavras que fazem as delícias da banda desenhada e da ficção científica. Se nem mesmo a física lhes resistiu (pense-se no «spin» de uma partícula, em menor grau nos «quarks»), nem mesmo disfarçando com a erudição do grego arcaico («electrão», «fotão», etc.), por que razão deveriam os estudos socioculturais evitá-lo?
7 Outra vantagem dessa indeterminação: qualquer delas se adequa ao momento em que estas linhas estão a ser escritas. Basta encontrar o artigo que o fundamente da maneira mais adequada.
8 Não é de estranhar que tenha sido Wiener o primeiro a propor uma dessas cronologias, aliás mais «fina», pois a cibernética viria na sequência de três outros modelos da «criação» humana de outros corpos. Cf. o artigo de Ieda Tucherman na RCL n.º 28, intitulado «Entre Anjos e cyborgs».
9 Cf. o até agora inultrapassável artigo de Hubert e Stuart Dreyfus «Making a Mind vs. Modelling a Brain: Artificial Intelligence back at a Branch Point», p. ex. na colectânea organizada por Margaret Boden e intitulada The Philosophy of Artificial Intelligence (Oxford, Oxford University Press, 1990, pp. 309-333).
10 Cf., de Allucquère Rosanne Stone, o capítulo «In Novel Conditions: The Cross Dressing Psychiatrist» [in The War of Desire and Technology at the Close of the Mechanical Age, Cambridge (Mass.), MIT Press, pp. 65-81], exposição de um caso de identidades — no caso, sexos — trocadas e respectivas consequências bem reais.
11 Mark Poster, «Cyberdemocracy: Internet and the Public Sphere», in David Porter (org.), Internet Culture, Nova Iorque e Londres, Routledge, p. 205.
12 Aliás retomada três anos depois (o título a que nos referimos é de 1995) numa Cybersociety 2.0: Revisiting Computer Mediated Communication and Community.
13 Procurámos até aqui evitar essa palavra ainda mais gasta pelo uso do que o prefixo «ciber-».
14 Cf., para um melhor esclarecimento do que aqui é apenas enunciado, o artigo de Michael Tepper «Usenet Communities and the Cultural Politics of Information», in David Porter (org.), Internet Culture, Nova Iorque e Londres, Routledge, pp. 39-54.
15 Embora tal seja relativamente fácil se o utilizador assim o quiser, até mesmo ao ponto de poder fazê-lo em tempo real. É essa possibilidade que está na origem do sucesso de programas-tecnologias como o ICQ.
16 O Leviatã instalou-se ou não na rede? cf. Richard C. MacKinnon, «Searching for the Leviathan in the Usenet» [in Jones, Steven G. (irg.), Cybersociety: Computer Mediated Communication and Community, pp. 112-137] e Out of Control, de Kevin Kelly.
17 Não faltam as pesquisas empíricas, inclusive em Portugal (cf. Gustavo Cardoso, Para uma Sociologia do Ciberespaço: Comunidades Virtuais em Português, Oeiras, Celta, 1998). Sem dúvida que os resultados de tais investigações são reveladores de determinadas tendências, servindo por isso de «baliza» às melhores análises de tipo teórico. Por vezes, contudo, fica-se com a sensação de que de pouco adianta saber como se distribuem — por sexo, por etnia, etc. — os utilizadores da Net, pelo menos quando é de acreditar que é apenas uma questão de tempo (e de dinheiro) até que uma grande maioria esteja ligada.
18 Tanto poderíamos dizer «utópicas» quanto «distópicas», pelo que se opta aqui pela ambiguidade.
Texto: 31/Ago/00