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Breve artigo para o Jornal de Letras, Artes e Ideias de 16 a 29 de Outubro de 2002 sobre a história da recepção cultural dos videojogos.

Jornal de Letras, Artes e Ideias, 16 a 29 de Outubro de 2002

 

Uma boa forma de introduzir o tema dos videojogos em 2002, mesmo que manipulando um pouco as datas, consiste em referir que neste ano se cumpre um daqueles aniversários «redondos» sobre um qualquer momento crucial. O problema está em definir qual desses momentos convirá melhor. Há dez anos pouco ou nada de relevante à excepção de Mortal Kombat, um pequeno marco no software lúdico por se ter tornado, algum tempo depois, um dos primeiros videojogos a inverter a sequência normal de adaptações filme-jogo. É certo que tinha personagens femininas, mas ainda nada que se comparasse ao posterior sucesso de Tomb Raider. A comemoração seria por isso desproporcionada. Vinte anos talvez se adeqúe melhor: 1982 corresponde ao boom dos microcomputadores, com o ZX Spectrum a ser lançado (no Reino Unido) em Abril e o Commodore 64 (nos Estados Unidos) em Dezembro. A «febre» não tardou. Contudo, os videojogos (que nem era suposto serem a forma de utilização dominante do Spectrum) já existiam, tanto nas salas de arcade quanto nos poucos lares que possuiam os chamados «TV Brinca». Recue-se então mais cinco anos, e deparamo-nos com a data de lançamento do clássico Space Invaders. No entanto, se 1977 foi o ano da massificação, foi em 1972 (de novo um aniversário múltiplo de 10) que Alan Bushnell lançou o jogo Pong e fundou a Atari, eventos que deixam muitas vezes esquecido que o primeiro «caça-moedas», Computer Space, tinha sido lançado no ano anterior. Mas a verdadeira certidão de nascimento dos videojogos foi, muito discretamente, registada ainda outros dez anos antes: num agora modesto PDP-1 da Digital, instalado no MIT, Steve Russell, liderando um conjunto de programadores, finalizava, quase clandestinamente, Spacewar.

O PDP-1 era um dos primeiros computadores a vir acompanhado de um ecrã, elemento indispensável para uma interacção em tempo real com a máquina, e Spacewar fazia uso das suas capacidades como só década e meia mais tarde o utilizador comum viria a saber possível. Mas não por qualquer aversão à tecnologia ou a este seu uso e sim, como pode depreender-se desta breve história contada por ordem anticronológica, pelo tempo que demorou até que o hardware se tornasse acessível: primeiro obrigando o potencial jogador a deslocar-se às salas de arcade, depois por via das modestíssimas consolas de primeira geração, e só na década de 80 com a qualidade gráfica – sempre crescente – proporcionada pelos computadores pessoais e pelas consolas mais sofisticadas da Nintendo e da Sega.

Não se pode dizer que por parte dos sociólogos, psicólogos e outros investigadores das ciências sociais esta apetência pelos usos lúdicos da tecnologia tenha sido pouco notada, mas os alvos foram (e continuam, mesmo que minoritariamente) apontados à óbvia violência manifesta na maioria dos jogos, por vezes à sua capacidade de viciar o jogador e de o afastar de uma vivência mais mundana. Pressupostos também eles viciados, diríamos nós, uma vez que procuram explicar um efeito não provado em vez de se concentrarem em causas mais profundas que eventualmente inocentariam os videojogos, retirando-os de vez do banco dos réus que ocasionalmente voltam a ocupar.

Já não é contudo essa a única perspectiva, nem mesmo a dominante. A nova geração de investigadores é aquela para quem os videojogos (pensemos neste caso no ano de 1977 como data mais relevante) começaram a fazer parte do quotidiano, e que como tal teve a percepção de que as alterações podiam situar-se a um nível simultaneamente mais profundo e mais vasto, a que podemos chamar «cultural». Se a isso aliarmos uma maior abertura por parte do campo académico, em particular nas áreas dos cultural studies e das ciências da comunicação, pode mesmo falar-se de um ainda tímido mas rápido triunfo: basta pensar nos anos que foram necessários para que o cinema e depois as novelas merecessem ser estudados nas universidades para admitir que os game studies, ainda na sua juventude, caminham rapidamente para a aprovação. A recente exposição Game On, que esteve na Barbican Gallery de Londres de 16 de Maio a 15 de Setembro, é mais uma prova disso.

Introduzimos acima o termo game studies não por um qualquer capricho terminológico mas sim porque é esse o termo proposto por Aspen J. Aarseth, o investigador norueguês que mais tem lutado pela sua legitimação, nomeadamente na primeira publicação académica (online, pois então, em http://gamestudies.org) a dedicar-se em exclusivo ao tema. A quantidade de estudos e de investigadores provenientes dos países nórdicos1 é aliás um dos elementos mais dignos de nota neste campo, o que torna compreensível que um dos melhores pontos de partida para quem queira aventurar-se na análise do que se tem feito (e note-se que já não são apenas artigos e comunicações e sim teses e conferências) se encontre no endereço finlandês http://www.knowledge.hut.fi/projects/games/gamelinks.html. É aí, de resto, que podemos encontrar uma tentativa de classificação do actual panorama de pesquisa, começando pelas já referidas relações entre jogo e violência e entre jogo e vício mas estendendo-se ao jogo como auxiliar de aprendizagem, aos aspectos tecnológicos, às questões de género e de etnia na fruição dos jogos e, categoria mais lata, ao jogo como fenómeno cultural (tema tão multiforme que arriscaríamos aplicar-lhe subdivisões: o jogo como forma de narrativa, o jogo como imersão, o jogo como arte, o jogo como elemento de socialização, o fenómeno revivalista do retrogaming, etc.)

Como não podia deixar de ser, a arte não tem estado alheia a este panorama e, talvez um pouco timidamente, começa a usar os videojogos como fonte de inspiração e de reflexão crítica. O melhor ponto de pesquisa continua ainda a ser o portal de arte na rede Rhizome. Numa lista já significativa, é possível destacar algumas utilizações do jogo como um material tão legítimo quanto a tela e o pincel para produzir obras de arte: assim acontece com Atari-noise, de Arcangel Constantini, e Gameboy_ultraF_uk, de Corby & Baily, ambos «armadilhando» jogos perfeitamente funcionais de forma a transformá-los em geradores de padrões áudio e visuais semi-aleatórios, ou, é apenas outro exemplo, com Daedaleum, de dEmeuZois Julien, que ilustra, a um ritmo mensal, poemas de Herman Melville com cenários retirados de antigos jogos de 8 bits. Há ainda outros casos, talvez mais interessantes pela sua mais apurada capacidade crítica ao explorarem a (im)possibilidade de dar um jogo por terminado, quanto mais não seja pelo vício de continuar indefinidamente: Trigger Happy, de Thomson & Craighead, recupera Space Invaders fazendo-nos disparar contra um texto que toma o papel das naves invasoras; Gameover, de Francesco Contin, procura recontar uma história começada tantas vezes quantas as que é interrompida pela mensagem «Game over», ou ainda Loneliness, de Nikola Tosic, um shoot them up muito simples que o autor define como podendo ser jogado «durante 30 segundos ou para sempre. Normalmente irrita os utilizadores, mas por vezes consegue despertar o seu interesse».

Ora, o que as três últimas obras mencionadas acabam por deixar a descoberto é que podemos virar do avesso a ideia do jogo como elemento marginal da cultura, fazendo-o em vez disso ocupar um lugar central. O resultado, como já Huizinga propunha na década de 30 ainda que num contexto distinto, é que se torna admissível afirmar que os videojogos são um dos elementos determinantes daquilo que é a cultura contemporânea. Um exemplo apenas, retomado de J. C. Herz, autora de Joystick Nation: exigindo os videojogos uma articulação quase reflexa entre os nossos órgãos perceptivos e motores, eles são o modelo gerador de inúmeras formas actuais de interacção com as máquinas, o que permite pelo menos lançar a hipótese de que também essa superficialidade, essa visceralidade, esse triunfo da simulação constituem o paradigma da experiência actual.

 

Notas

1 Justiça seja feita também, sem esquecer os óbvios contributos dos EUA, ao uruguaio Gonzalo Frasca, que propõe o abrangente termo «ludologia» (cf. o seu site em http://ludology.org) para o estudo das relações entre jogo, qualquer que seja o seu meio de expressão, e cultura, na esteira do trabalho pioneiro de Johan Huizinga.

 

Texto: 3/Out/02

© Jorge Martins Rosa

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