Metamorfoses Futuras

Afirmava Northrop Frye, no consagrado Anatomy of Criticism, que «Science fiction […] is […] a mode of romance with a strong tendency to myth.». Com esta afirmação procurava sugerir que, na sequência do movimento descendente duma literatura mítica e heróica rumo aos modos realista (ou imitativo baixo) e irónico, se estaria a dar um regresso a formas mais romanescas, não só por uma representação fantasista como – e talvez essencialmente – pelo estatuto elevado, no limite sobre-humano, dos protagonistas. Não há, contudo, meros regressos, pois as condições histórico-sociais são distintas, e talvez justamente por isso a ficção científica é o género eleito por Frye para assumir semelhante papel: aquilo de que deuses e heróis eram capazes pela sua natureza, as personagens da ficção científica são-no por intermédio da tecnologia. Um desses feitos, tão caros à mitologia clássica, é a metamorfose, que igualmente adquiriu relevância contemporânea nesses discursos (nem sempre narrativos, mas em todo o caso informados pela ficção) sobre o «pós-humano» e o «trans-humano».

Integrando-se num projecto de investigação intitulado «A Ficção e as Raízes da Cibercultura», este texto pretende olhar mais de perto para alguns exemplos anteriores a essa euforia habitualmente conotada com o movimento cyberpunk, e portanto supostamente com início apenas em meados dos anos 80 do século XX. Nessa análise será dada especial atenção aos paralelismos entre as alterações corporais presentes em contos de ficção científica das décadas 30 a 60 e, mesmo que não directamente nela inspirados, a Antiguidade Greco-Latina.

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Interdisciplinar «Mitos e Heróis: A Expressão do Imaginário», Braga, Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 23 de Outubro de 2010, organizada pelo Departamento de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa. Publicado in Ana Paula Pinto et. al. (orgs.), Mitos e Heróis: A Expressão do Imaginário, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 647-661.

Depois do Mito, a Tecnologia

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Interdisciplinar «Mitos e Heróis»: A Expressão do Imaginário, Braga, Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 23 de Outubro de 2010, organizada pelo Departamento de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa.

Publicado in Ana Paula Pinto et. al. (orgs.), Mitos e Heróis: A Expressão do Imaginário, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 647-661.

1.

Num breve aparte naquela que é talvez a sua obra mais consagrada, Anatomy of Criticism, Northrop Frye diz da ficção científica que é «a mode of romance with a strong tendency to myth» (Frye, 1957: 57). Afirmação demasiado sucinta para quase passar despercebida, ela foi no entanto invocada, ainda que perdendo-se o contexto em que é proferida, por adeptos do género como forma de legitimá-lo no interior do campo literário. É disso exemplo uma compilação feita por Roger Schlobin em 1981, precisamente intitulada «Definitions of Science Fiction and Fantasy», onde, numa lista com 68 entradas, na sua maioria provenientes de autores do género (Isaac Asimov, Norman Spinrad, Theodore Sturgeon e outros) se encontra também essa frase de Frye1.

Evitando o pendor apologético desse inventário, recuperemos o sentido da afirmação de Frye. Esta surge num grande capítulo intitulado «Crítica Histórica: Teoria dos Modos», que começa por actualizar o critério aristotélico segundo o qual as narrativas podem ser classificadas de acordo com o estatuto dos protagonistas, por comparação com o do leitor no mundo extra-literário. O raciocínio de Frye leva-o a postular cinco modos: o mítico, com deuses e semideuses como personagens principais; o romanesco ou literatura heróica; o imitativo elevado, que relata os feitos de líderes; o imitativo baixo, com personagens comuns; e finalmente o modo irónico, onde estas possuem um estatuto inferior. Estabelecido este princípio de classificação, a história da literatura ocidental pode então ser vista como a da descida desse pedestal do mito – na verdade pré-literário – rumo ao modo irónico, passando por períodos em que cada um dos outros modos é, à sua vez, o dominante: «a ficção europeia, durante os últimos quinze séculos, desceu constantemente seu centro de gravidade, lista abaixo» (Frye, 1957: 40). Contudo, e é essa a nota profética subjacente à afirmação de Frye sobre a ficção científica, depois dos «homens sem qualidades» que marcaram a primeira metade do século XX, e seja por um simples esgotamento das modalidades literárias seja por outras razões menos internas ao campo (por exemplo o sentido de renascimento ou de eternidade associado aos modos romanesco e mítico), começava a perceber-se uma nova ascensão a estas configurações mais arcaicas.

Acompanhando esta classificação em cinco modos, surge ainda uma outra, retomada de Schiller, que distingue entre uma atitude «ingénua», isto é, primitiva, genuína na sua descoberta de novas potencialidades literárias, e a «sentimental», «recriação posterior de um modo mais antigo» (Frye, 1957: 41). Daqui decorre que não podemos, numa sociedade secularizada e tecnológica, voltar à ingenuidade primordial dos mitos, tanto mais que estes constituem um legado que, mesmo que cada vez mais ignorado fora da erudição da academia, persiste como constituinte da nossa identidade cultural. Podemos redescobri-los e actualizá-los, mas inevitavelmente como recriação «sentimental». Ora, será que essa perda de ingenuidade acarreta também a perda do poder arquetípico dos mitos?2

Bruce Clarke, em Allegories of Writing: The Subject of Metamorphosis (Clarke, 1995) apresenta uma proposta que indirectamente nos ajuda a contextualizar a intuição de Frye sobre a ficção científica. Tão cedo quanto o advento da racionalidade grega3,

«the technology of writing that replaced oral transmission coincided with the development of allegorical rationalizations for mythic narratives. The pre-Socratic philosophers introduced rational systematization into a body of mythic and legendary materials, and eventually the supplementary commentary was treated as more basic than the material explained» (Clarke, 1995: 23).

Por outras palavras, desde que numa cultura escrita – e recorde-se que, desse ponto de vista, a obras de Ovídio ou de Apuleio são já um produto tardio, «pós-mítico» –, a interpretação literal duma narrativa é indissociável duma interpretação alegórica, que (entre outras razões por ser um sedimento de significados) tende a suplantá-la e a sobreviver-lhe. O poder de tais narrativas, nomeadamente as que relatam acontecimentos para nós tão inverosímeis como as metamorfoses, resulta então não tanto dum potencial mítico entretanto atenuado mas da possibilidade dessa alternância entre leituras, sendo aliás desejável que (passe a alusão à pouco pacífica proposta de Todorov sobre o que constitui o «fantástico» na literatura4), depois duma hesitação entre qual deva prevalecer, triunfe a alegórica.

É certo que se tornou hoje impossível restituir o modo como os ouvintes originais teriam interpretado, por exemplo (se nos é permitido tratar esse público como uma massa uniforme), a transformação de Calisto e Arcas primeiro em duas ursas e depois nas constelações que conservam esse nome, mas o seu poder alegórico permanece. E pode inclusive ser reactualizado numa linguagem contemporânea5. Aliás, se estas justificações não forem suficientes, recordemos que a própria narrativa – como bem nos mostrou a semiótica de pendor estruturalista e pós-estruturalista – é redutível a um conjunto de transformações actanciais, pelo que a metamorfose no texto pode ser legível como uma meta-reflexão acerca da narratividade como metamorfose do texto: «metamorphosis in literature may be read as an allegory of writing and its effects […] the metamorphic changes represented within texts are allegories of the metamorphic changes of texts.» (Clarke, 1995: 2)

Ora – e com isso tentamos retomar Frye – se a deriva da literatura ocidental rumo ao realismo praticamente anulou a possibilidade duma leitura literal (ou pelo menos «quase-literal») em sintonia com a alegórica6, significa isso que está definitivamente perdido o efeito de deslumbramento que associamos aos mitos? Julgamos ser na resposta a esta questão que, ao menos em parte, reside a pertinência do diagnóstico de Northrop Frye7, que Clarke confirma destacando a dimensão alegórica:

>«Allegory has often been criticized as a credulous, regressive literary mode […]. By contrast, disabused of archaic taboos, the realistic hero increasingly moves in a world purged of demonic obstacles. However, at present the value and possibility of absolute individual autonomy is under question, and the resurgence of literary interest in allegory has accompanied the progress of this critical skepticism.» (Clarke, 1995:53)

De modo por vezes demasiado entusiástico, muitos dos autores de ficção científica invocam também esse parentesco com o mito8. Tal ideia pode parecer contraditória com a suposta aspiração do género ao rigor da ciência, mas apenas se esquecermos que, desde a sua origem enquanto categoria de publicação, se assume (em diferentes graus) como uma forma de fantasia que quer aproximar-se do realismo pela plausibilidade das situações futuras que narra. Samuel Delany, simultaneamente escritor e académico, sugere por isso no famoso artigo «About 5.175 Words» (Delany, 1969) que se distingam estes géneros pelas suas diferentes «subjunctividades»: enquanto o realismo e o naturalismo narram o que «poderia ter acontecido» e a fantasia o que «não poderia ter acontecido», a ficção científica é o campo do que «não aconteceu», deixando em aberto se essa negativa equivale a um «ainda não» (as distopias, as histórias de «antecipação», …), a um «nem acontecerá» (a «science fantasy»), a um «pelo menos desta forma» (a história alternativa), ou a outras variantes, a cada uma o seu subgénero. Abreviando, é na ficção científica que, mesmo que de forma enviesada (e tanto mais quanto mais se aproxima da fantasy) pode aspirar-se à coexistência entre uma leitura «quase-literal» – que empurra sua a subjunctividade para a do realismo – e outra alegórica – que a aproxima da da fantasy9.

Se aceitarmos então o que propõe Bruce Clarke, para quem a temática literária da metamorfose constitui o veículo por excelência da alegoria, devemos portanto interrogar-nos até que ponto essa aspiração – que no caso da ficção científica conflui com a sua aspiração à legitimidade no campo literário – se tem concretizado, e de que forma consegue pôr em dia todo esse depósito de significados que, em última análise, remonta à mitologia clássica. Pretendemos por isso encontrar ilustrações significativas do modo a metamorfose como foi tratada em contos de ficção científica das décadas 30 a 60, isto é, consideravelmente antes de os discursos contemporâneos sobre o «pós-humano» e o «trans-humano» (nem sempre narrativos, mas em todo o caso informados pela ficção) terem feito o percurso retórico inverso, secando a fonte alegórica ao insistirem numa interpretação literal, demasiado literal, da superação do humano pela tecnologia.

2.

Antes de avançarmos para a apresentação e análise de alguns dos títulos que elegemos devido a esse critério de relevância, a presença da temática da metamorfose, será necessária uma contextualização mais fina. Como entretanto se verá, confirmando algumas das suspeitas habitualmente lançadas ao género da ficção científica, em particular à chamada «genre SF» (a que surge nas revistas que reclamam para si o próprio género, ou que pelo menos assume essa filiação), na grande maioria dos casos não se encontram quaisquer alusões deliberadas à mitologia clássica. É de resto possível arriscar que, pelo menos numa fase inicial, teria faltado a boa parte dos autores que publicavam nas revistas especializadas, para além da formação básica em literatura inglesa, o à-vontade com a cultura greco-romana clássica10. Tal facto é contudo irrelevante: importa-nos a recorrência de um determinado imaginário, não a (no limite indeterminável) intencionalidade mais ou menos consciente do autor que o reactualiza.

Precisamos para isso de regressar à mitologia grega, mais concretamente à linhagem que começa com a sedução de Leda por Zeus sob a forma de cisne, que de resto se destaca, por entre os múltiplos actos de infidelidade de Zeus, quer com deusas quer com humanas, como uma das mais representadas, nomeadamente nas artes plásticas11. No caso, interessa-nos não tanto a relação erótica quanto o seu fruto: nada mais nada menos do que dois pares de gémeos, cada um desses pares emergindo de um ovo12. Note-se a extraordinária simetria, que faz do mito uma notável alegoria da ideia de «duplo»: dois ovos, cada um com dois descendentes; dois filhos, Castor e Polideuces, e duas filhas, Helena e Clitemnestra. Mais extraordinário ainda, algo hoje em dia inverosímil até numa narrativa de fantasia, dois dos filhos foram gerados por Zeus, e por isso são semidivinos (Polideuces e Helena), e outros dois são filhos legítimos de Tíndaro, rei de Esparta e marido de Leda, e por isso apenas humanos (Castor e Clitemnestra). Em cada ovo, um descendente de cada pai. Se no caso de Helena e Clitemnestra essa dualidade inicial se vai desvanecendo em favor de narrativas individualizadas, entre Castor e Polideuces ela reforça-se, a ponto de serem referidos em conjunto como os Dióscuros. Coroando a amizade fraterna, combatem juntos por diversas ocasiões, primeiro contra o javali enviado por Afrodite, depois na embarcação de Jasão, em busca do Velo de Ouro, e finalmente contra outros dois irmãos gémeos, Idas e Linceu. Castor morre nesta peleja, o que leva Polideuces a pedir a Zeus, o pai «biológico», que conceda a imortalidade ao meio-irmão humano. Segundo uma das versões, passam daí em diante a alternar um dia no Olimpo e outro no Hades, exacerbando uma simetria que terá como cúmulo a sua transformação nas estrelas da constelação dos Gémeos. A linha narrativa que começara com uma metamorfose temporária (a de Zeus num cisne) conclui-se por isso com uma outra, que eterniza, numa dimensão cósmica, a relação de amizade fraternal dos dois filhos de Leda.

Há, porém, ainda uma outra versão do mito. Na Bibliotheca, do Pseudo-Apolodoro, é Nemesis, a deusa da vingança ou retribuição, refugiando-se de Zeus sob a forma duma gansa (mas não conseguindo ludibriá-lo com esse estratagema, pois este metamorfoseia-se em cisne), quem gera os ovos com os dois pares de gémeos. Só depois são entregues a Leda por um pastor que os descobre (ou, ainda noutra versão, por Mercúrio). Esta variante, ainda que tornando incoerente a simetria entre a natureza ora humana ora divina dos quatro descendentes, acrescenta em contrapartida uma nova dimensão interpretativa. Sendo Nemesis a deusa que redistribui a justiça punindo a desmesura ou hubris, esta vê-se aqui, ao menos uma vez, impotente perante a hubris lúbrica do próprio Zeus. Embora mais ténue nesta sequência, pois, à excepção da cobiça que leva à morte de Castor, também ela de origem libidinal, as vidas de qualquer dos quatro gémeos são comparavelmente desprovidas de hubris, encontramos aqui, ainda em estado incipiente, uma ligação deste conceito ao do duplo.

Precisaremos de avançar bastantes séculos13, até The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, e portanto até ao período vitoriano quase imediatamente anterior à psicanálise de Freud, para descobrirmos até que ponto a literatura (e a cultura!) ocidental consolidou a associação entre esses dois núcleos semânticos. Mas também, arrastando-os no mesmo torvelinho, o da metamorfose.

3.

Não é esta a ocasião para fazer a devida análise a The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde14, obra maior da época e da mentalidade vitorianas, e atravessada não só pela previsível estrutura binária (Jekyll/Hyde, entradas e saídas, poções e antídotos, …) como também por uma organização ternária (três personagens-foco e os correspondentes três níveis narrativos, a antecipação da tópica freudiana id/ego/superego na geografia das movimentações do protagonista, etc.). Teremos de nos contentar, em nome da ligação ao nosso corpus de ficção científica, com uma rápida identificação das características que permitem eleger esta novela como modelo actualizado dos mitos metamórficos, e em particular dos elementos que estruturam essa unidade narrativa que se inicia com Leda e o cisne e termina com a catasterização de Castor e Polideuces.

Tão óbvia que se confunde com a própria novela é a presença da hubris. Mesmo quem nunca a tenha lido saberá associá-la ao desejo fáustico de conhecimento científico, que já Mary Shelley consubstanciara na personagem de Victor Frankenstein e que, de tão reiterada na literatura, acabou por cristalizar na caricatural figura – também ela típica de alguma ficção de género – do cientista louco15, tanto quanto nas por vezes patéticas advertências de algumas abordagens às relações entre ética e ciência.

Bastam-nos contudo breves citações para corrigir o que possa haver de equívoco nessa interpretação. No derradeiro capítulo, aquele que narra os eventos pela voz do próprio Henry Jekyll, diz este que a ciência foi para ele apenas um meio, uma forma de conseguir extravasar a pulsão para «a certain impatient gaiety of disposition» (Stevenson, 1886: 81), insuficientemente dominada pelos imperativos morais, pela «commonly grave countenance before the public» (idem): «it came about that I [Jekyll] concealed my pleasures» (idem). A explicação que encontra para esta pulsão conduz-nos a outro dos elementos a identificar, mas não o materializando – nunca o materializando – em toda a sua plenitude:

«thus I drew nearer to that truth […]: that man is not really one, but truly two. […] I saw that, of the two natures that contended in the field of my consciousness, […] I was radically both, and from an early date» (82).

Identificada essa natureza dual, a hubris manifesta-se então em parte no desejo de encontrar a fórmula que permite separar cada uma das metades, mas acima de tudo – e é este o pormenor muitas vezes descurado – no facto de a faceta mais sinistra ser aquela que, desde o início, talvez mesmo como verdadeiro motor das pulsões de Jekyll, emerge como a dominante. Ainda que aparentemente contraditórias e ingénuas, as hipóteses sugeridas ao longo da narrativa confessional de Jekyll confirmam-no. Por um lado, «the evil side of my nature […] was less robust and less developed» (84), e portanto Hyde é mais baixo, mais deformado, mas também mais jovem. Em contrapartida,

«Had I approached my discovery in a more noble spirit […] and from these agonies of death and birth I had come forth an angel instead of a fiend. […] although I had now two characters as well as two appearances, one was wholly evil, and the other was still the old Henry Jekyll. […] The movement was thus wholly toward the worse.» (85)

E, como sabemos pelo trágico desfecho, o castigo por essa hubris – que aqui está à beira da ironia, mas que nas mitologias clássicas passaria por justiça divina – é a progressiva irreversibilidade da metamorfose em Hyde, apenas contrariada pelo suicídio (homicídio? duplo homicídio?) de Jekyll, que impede esse destino.

Frequentemente tentando evitar um tom tão declaradamente sombrio, mau grado a constante presença da hubris, a associação entre metamorfose e duplo será por repetidas vezes recuperada pela ficção científica.

4.

A nossa – também necessariamente abreviada – resenha ao corpus16 começa por um conto que faz uma referência explícita a Jekyll & Hyde. «Sculptors of Life»17, de Wallace West, publicado na revista Astounding Science Fiction em Dezembro de 1939. É também, reconheçamos, aquele cuja narrativa é mais «juvenil», mais ingénua, o que é justificável por esse ser ainda o período em que o género estava nos primórdios, refém do optimismo tecnológico e das intenções pedagógico-doutrinais dum Hugo Gernsback e, salvaguardadas as diferenças, dum John Campbell, Jr. – editor da Astounding desde 1937, e portanto o responsável pela publicação deste conto. A metamorfose é aqui concebida como uma versão high tech, mas também tornada mercadoria, do elixir da juventude. Para quem possa pagá-lo, a consciência é transferida para uma réplica artificial do corpo enquanto jovem, sendo o envelhecido descartado como uma casca oca.

Ainda que o foco seja um casal de «escultores», é sobre dois dos seus clientes milionários que a narrativa incide. Como num conto de fadas que descambou, descobrimos haver uma paixão, velha de 400 anos, entre a princesa Anne Libensen e o magnata Henry Wharton, que se tornou em profundo ódio e rivalidade. Ainda que ignorando a existência desta velha paixão, os «escultores» congeminam para, numa iminente renovação dos corpos de ambos, e à maneira de Jekyll mas com o efeito contrário, isolar apenas a parte bondosa de cada um (isto é, travando a cópia das memórias no seu estádio ainda inocente de jovens adultos, «limpando» a posterior degradação do seu carácter).

Encontramos a hubris, primeiro que tudo, nas intenções destes pacientes voluntários, que pretendem prolongar, quem sabe se até à eternidade, as suas vidas; mas hubris também, por mais que bem-intencionada, dos «escultores», que querem desencadear uma cascata de mudanças no mundo a partir destes agentes privilegiados18. Todavia, como o exige o apelo narrativo ao público, a experiência é mal sucedida: devido à transferência parcial das memórias, os velhos corpos continuam dotados de vida, havendo verdadeiramente uma duplicação das personagens da princesa e do magnata. Em consonância com a atmosfera de conto de fadas (ainda que finalizando com um tom grimmiano), a velha princesa ajuda a fuga do jovem casal com a paixão rejuvenescida, tomando em mãos – com um homicídio (o do magnata na sua versão idosa) e com o seu suicídio – a tarefa que a tecnologia mais sofisticada não foi capaz de cumprir. Terceira irrupção da hubris, em nome duma juventude perdida, mas cuja função é também a de neutralizar as consequências das anteriores.

Abreviamos por razões de espaço o conto seguinte na ordem cronológica, «Cosmetics», de John MacDonald (publicado em Fevereiro de 1948 também na Astounding), com uma ideia bastante semelhante apesar de mais bem executada: o método «autocosmético» (combinação entre auto-hipnose e o recurso a uma máquina) permite um rejuvenescimento quase eterno e uma alteração verdadeiramente proteica do corpo, mas com a contrapartida, da qual os indivíduos mal têm consciência, de ficarem obcecados apenas com o aspecto físico. A excepção é uma minoria de resistentes que advoga o regresso a um tempo em que a cultura e a ciência permitiam sublimar uma beleza impossível. Mas o amor, o amor físico e superficial da mulher do protagonista, a preferência desta por um Hyde que está aqui à flor da pele, deita tudo a perder.

É dum outro tipo de amor, o amor à arte – e também à ciência – que trata «A Work of Art», de James Blish (originalmente publicado na edição de Julho de 1956 da Science Fiction Stories). Não há, estritamente falando, uma metamorfose, a não ser para o protagonista, o compositor Richard Strauss, cujos estados mentais são revividos num corpo de aluguer no ano 2161. Strauss emerge assim como um Hyde benigno num Jekyll, seu hospedeiro temporário até que componha uma ópera ao estilo «antigo». Ao regressar num novo corpo, é contudo necessário que a mente do seu hospedeiro se mantenha adormecida: ou Jekyll, ou Hyde, nunca ambos em simultâneo.

Sendo James Blish um autor de uma geração distinta – e também com uma formação literária muito mais sólida, a ponto de ter escrito sob pseudónimo textos de critica literária em apologia da ficção científica –, a erudição nas suas referências é visivelmente substancial. Mas apesar das alusões a figuras da mitologia clássica, como Vénus e Electra, é em «Histrion» de Ezra Pound, um poema sobre o ofício do actor, que encontramos o mote, quer para a ópera do pseudo-Strauss quer para o conto: «…the souls of all men great / At times pass through us, / and we are melted into them, and are not / Save reflections of their souls» (in Blish, 1956: 133-134). Essa é uma forma de anunciar o paradoxo subjacente ao conto: quase no final, depois de estreada a ópera e de o seu «mind sculptor»19, o Dr. Barkun Kris, lhe revelar que não seria eticamente aceitável continuar a experiência, pois o hospedeiro de Strauss teria de retomar a sua vida, Strauss é o único a ter consciência de que, por ser apenas um simulacro, a sua ópera «was as empty of genius as a dry gourd». Mas quem, senão um verdadeiro Strauss, poderia avaliar quanto a sua cópia – o seu duplo – se distancia do original? Quem senão Strauss poderia ter um acesso de revolta («a surge of revolt poured through his bloodstream. I am I, he thought. I am Richard Strauss until I die», [Blish, 1956: 139]) pela sua iminente segunda morte?

E se essa elaboração em torno do conceito de duplo não bastasse, encontramos uma outra na simetria – presente aliás na ambiguidade do título do conto – entre a obra de arte imperfeita produzida por «Strauss» e a obra de arte que é Strauss, também aparentemente imperfeita mas aqui atingindo um aparente cúmulo de perfeição, ou tão-só um cúmulo na hubris do seu «escultor», capaz de vangloriar-se de que

«The art of mind sculpture […] may never reach such a pinnacle again. […] we were able to impose upon such unpromising material not only the personality but the genius of a great composer. […] That genius belongs entirely to you, to the persona that thinks of itself as Richard Strauss.» (Blish, 1956: 138-139)

Mas não está afinal o cientista a projectar em Strauss a crença no seu próprio génio? Afinal, é preciso que «Strauss» produza uma obra de arte para que Kris possa ver reconhecido o seu trabalho de escultor também como obra de arte. Strauss e Kris devem por isso ser lidos como mutuamente complementares, ou, para simplificar, duplos entre si.

«All you Zombies», conto escrito por Robert Heinlein e publicado em Março de 1959 no Magazine of Fantasy and Science Fiction, é talvez a história que combina estes elementos da forma mais contorcida. Tão contorcida, aliás, como a própria narrativa, que nem sequer precisa de mais do que uma só personagem.

Se deixarmos de lado (apesar de tudo o que com isso se perde) todas as contorções resultantes de viagens no tempo efectuadas pelo protagonista, podemos inventariar os seguintes elementos cruciais acerca deste: 1) o facto de ter nascido como pseudo-hermafrodita feminino, mas com o aparelho reprodutor suficientemente desenvolvido para 18 anos depois dar à luz uma bebé, fruto duma relação fortuita com um desconhecido; 2) as complicações na sequência do parto que levam a que seja «reconstruído» como homem – esta é, de resto, a metamorfose fundamental, e também a que mais substancialmente materializa a ideia do duplo; 3) a sua subsequente vida não só como homem mas, num momento ainda mais tardio, como «agente do tempo». Emerge aqui a hubris, que o leva a viajar ao passado para raptar a própria filha, para logo de seguida, recuando ainda mais no tempo, a levar para um orfanato (o mesmo onde cresceu, enquanto mulher). Por entre essas viagens, encontra uma sua versão anterior, já do sexo masculino (mas desconhecedor de toda esta trama), e leva-o até ao ponto no espaço-tempo onde seduz e tem relações sexuais consigo mesmo, enquanto jovem adulta do sexo feminino. Pai, mãe e filha são afinal uma e a mesma pessoa, a única personagem que, numa hubris em crescendo, se cruza sucessivas vezes com o seu duplo de outro tempo, a ponto de considerar todos os outros – aqueles que não são «ele» – meros zombies.

Quase a terminar a ronda cronológica pelo corpus, encontramos de novo dois contos com uma temática similar entre si, que além disso antecipa o conhecido conceito de cyborg: a substituição progressiva de órgãos do corpo até ao momento crucial em que todo o corpo foi renovado, passando o indivíduo a ser duplo de si mesmo. Falamos de «Am I Still There?», de James R. Hall (publicado na Analog20 de Setembro de 1963), e «Masks», de Damon Knight (publicado na Playboy de Julho de 1968). No primeiro destes contos, o motor da história é o upload – como diríamos hoje – da totalidade dos estados cerebrais para um equivalente artificial. O paciente, já com 409 anos de idade e tendo já feito 87 cirurgias substitutivas, prepara-se para trocar o único órgão que mantinha de nascença, e supostamente o responsável pela sua identidade, o cérebro. De todos os contos apresentados, talvez aquele em que a hubris surge mais contida, uma vez que, a ter havido alguma vez um desejo de vida eterna, ele se reduziu para o protagonista a uma espécie de rotina (acompanhada pelas ocasionais cirurgias) em que já nem pensa na idade que tem. Mas a rotina não deixa de ser acompanhada por uma inquietude que provém da ocasional percepção de o corpo lhe ser alheio:

«“See that? I can raise those hands. I can make them touch each other. I can feel them touching each other. But it is not just quite right. It’s just a little bit off key, like one trumpet player out of twenty being about one-sixteenth of a note flat.”» (Hall, 1963: 78)

«Masks», se nos abstrairmos de alguns pormenores contextuais na intriga e na caracterização das personagens, poderia ser uma continuação de «Am I Still There?», inclusive pelo contraponto com a extrema contenção da hubris nesse outro conto, pois aqui o protagonista, apesar da sua suposta ausência de emoções depois de dotado de órgãos artificiais, explode no final. Progressivamente transformado em cyborg, «replaced […] with machinery that did not bleed, ooze or suppurate» (Knight, 1968: 85), este experiencia também o desaparecimento das suas emoções, mas algo de visceral nessa perda leva-o a não aceitar a transformação, insistindo em usar uma máscara para exacerbar a alienação entre o seu interior e o aspecto externo, reconstruído: «I’m in this thing. I’ve been in it for two years. I’m in it when I go to sleep, and when I wake up, I’m still in it.» (Knight, 1968: 84) Em luta com este «duplo», há contudo algo que conserva da sua identidade, a mais básica e mais animalesca das emoções:

«No more adrenal glands to pump adrenaline into his blood, so he could not feel fright or rage. The had released him from all that – love, hate, the whole sloppy mess – but they had forgotten there was still one emotion he could feel.» (Knight, 1968: 86)

Liberta-a matando brutalmente um cão, e com esse acto deixa que a hubris tome conta de si. Se no final de «Am I Still There?» o diagnóstico é ainda uma hesitação entre um «I found him essentially the same» (Hall, 1963: 79) e a alusão à nota musical quase imperceptivelmente fora de tom, aqui a metamorfose, como em Jekyll & Hyde, é completa. Tão completa que nada resta de humano.

5.

Nunca é demais recordar o exaustivo trabalho classificatório, de inspiração semiótica, de Francis Berthelot em La métamorphose généralisée: Du poème mythologique à la science-fiction (Berthelot, 1993). Depois de catalogar, de uma extensa amostra que cobre séculos da literatura ocidental, as metamorfoses de acordo com quatro grandes variáveis – o sujeito, o agente, o processo e o produto –, e de olhar para o modo como certas regularidades e padrões evoluíram ao longo do tempo, Berthelot identifica as seguintes tendências (Berthelot, 1993: 193-201):

  • Ao nível do sujeito que sofre a metamorfose, a transição de um regime (pré-ficção científica) em que o indivíduo é transformado por inteiro para um outro em que ora a transformação é parcial (um órgão, uma função corporal) ora afecta uma multiplicidade de indivíduos;
  • Ao nível do agente que a executa, deixa de ser de ordem «fantasmática» (nomeadamente divina) e com uma motivação moral, passando a ser uma entidade material (na maioria das vezes um meio tecnológico) e com um objectivo concreto (moralmente neutro ou ambíguo);
  • Ao nível do processo, este começa por ser imediato (e por isso quase ausente da narrativa, que se sustenta na crença do poder do agente) para se tornar um processo que se desenrola ao longo do tempo (com isso adquirindo um peso importante na narrativa, sustentando-lhe a verosimilhança). Também relevante é o contraste entre a manutenção da identidade do sujeito apesar da metamorfose (pense-se nos gémeos Castor e Polideuces) e a perda de identidade motivada por esta; algo que, pelo menos nos títulos por nós mencionados, é já identificável em Jekyll & Hyde e se mantém nos contos de ficção científica que constituem o nosso corpus;
  • Finalmente, ao nível do produto ou resultado, e de forma complementar ao agente, de material (caso da esmagadora maioria das metamorfoses ovidianas: minerais, plantas, animais, objectos siderais) passa a imaterial ou fantasmático (embora o nosso corpus não confirme esta tendência), e de estável21 passa a evolutivo e tendencialmente irreversível – em conformidade com a «duração» do processo.

Como se compreenderá, a identificação destas tendências não significa que em todos os casos elas se confirmem. Por exemplo, se confrontada a tabela de Berthelot com o corpus que apresentámos, verificamos que na maioria destes contos a afecção da totalidade do sujeito tende a ser o «ponto de fuga» da metamorfose, mesmo que a narrativa isole uma fase desse processo. Por dependerem de inovações técnicas que lhes servem de agente, as metamorfoses colectivas surgem muitas vezes como possibilidade («Cosmetics»), embora o foco continue a ser o indivíduo (todos os outros contos). E, como anunciámos, o produto continua a ser material (mais do que isso: continua a ser um sujeito), mesmo que possa ver-se privado da sua humanidade, como em «Masks».

Tendo em conta hipótese acima proposta, da íntima associação entre as ideias de hubris e de duplo, a relação para nós mais pertinente entre estas variáveis é a linha que conecta, por intermédio do processo, o sujeito e o resultado. É possível identificar, como característica quase omnipresente nestes 6 contos, uma perda de identidade que afecta – ou pelo menos ameaça afectar – o sujeito depois de transformado22. Tal como na ambiguidade de interpretações que identificámos na confissão de Jekyll, a hubris (do sujeito ou do agente) surge ora como motor da transformação («Cosmetics», «A Work of Art»), ora como efeito colateral da mesma («All you Zombies», «Masks»). No primeiro caso o papel da técnica é variável, ainda que nunca verdadeiramente neutro; no segundo tem um claro contributo, mesmo que indirecto, para a eclosão dessa hubris.

Todavia, o traço mais significativo e constante em todos os contos – mas também o que é trabalhado segundo formas mais variáveis – é o da presença do duplo. Para compreender por que razão esse é o elemento com maior pregnância alegórica, devemos suspender o enquadramento semiótico de Berthelot, substituindo-o pela perspectiva mais global de Marina Warner, em Fantastic Metamorphoses, Other Worlds. Nesse livro, baseado nas Clarendon Lectures que leccionou em 2001, Warner sustenta que a ficção em torno das metamorfoses, acompanhando as mudanças na mentalidade ocidental e as influências externas que esta recebeu, pode ser classificada segundo quatro grandes categorias, que intitulou «mutating» (a variabilidade total cujo legado mais notório é o clássico de Ovídio), «hatching» (a transformação como alegoria para a maturação individual, que é já visível em Apuleio mas que tem o seu auge nos séculos XVII e XVIII, antecipando o Bildungsroman), «splitting» (a separação do «eu» entre alma e corpo, que tem como figura-chave o zombie, o corpo desprovido de alma e tornado autómato controlável por forças exteriores), e finalmente «doubling» (a multiplicação do eu em múltiplas instâncias, ora por via sobrenatural ora científica).

Se na primeira e na segunda constelações alegóricas é ainda possível uma unidade do «eu» – sendo a metamorfose dependente duma vontade divina no primeiro caso e de um processo natural (ainda que incerto) no segundo –, tal pressuposto perde-se nas configurações mais recentes. Qualquer delas pode facilmente ser encontrada na literatura e no cinema contemporâneos, mas não é preciso pesquisar muito para nos darmos conta de que o processo de «splitting» possui uma maior afinidade com os géneros do fantástico e do terror, enquanto o «doubling» (que nada por acaso emerge um pouco mais tarde, já a caminho do século XIX) parece ter sido o mais comummente eleito pela ficção científica, como parecem confirmar os exemplos apresentados. Ainda muito latente no episódio de Leda e o cisne, este eixo semântico que liga a ideia do duplo à da hubris parece ter encontrado o seu lugar natural numa cultura em que a ciência e a racionalidade – e acima de tudo alguns dos seus frutos, como as tecnologias da reprodução e da transmissão à distância23 – tomaram a dianteira. Nas palavras de Marina Warner,

«the changes in the means of representation have also contributed to spreading, through literature as well as within the media themselves, a plural idea of consciousness that installs the double or doubles in the ordinary way of things» (Warner, 2002: 202, ênfase nossa).

Bibliografia

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Notas

1 Também Robert Scholes surge, propondo «structural fabulation» como conceito alternativo ao de «ficção científica», dizendo desta que «is fiction that offers us a world clearly and radically discontinuous from the one we know, yet returns to confront that known world in some cognitive way. (Scholes, 1975: 29)

2 Como afirma Robert Scholes no artigo «Boiling Roses: Thoughts on Science Fantasy», «the development of positivistic science and its literary handmaiden, realism, made the folk tales fantastic, because they made the worlds scientific and realistic» (Scholes, 1987: 11-12), e portanto, a não ser por via de algum recuo civilizacional, está-nos vedado um verdadeiro regresso ao mito.

3 Pensamos por exemplo na famosa interrogação Acreditavam os Gregos nos seus Mitos?, de Paul Veyne.

4 Ainda em «Boiling Roses» Scholes critica quer essa proposta quer a de Eric Rabkin: «I consider it an error for that admirable theoretician, Eric Rabkin, to have founded a theory of fantasy upon what I would call surrealism, just as I consider it an error for that perhaps even more admirable theoretician, Tzvetan Todorov, to have appropriated the word fantasy for what most of us would call the uncanny.» (Scholes, 1987: 4)

5 A título de ilustração, o próprio Bruce Clarke mostra como pode ser aplicado a Ovídio o vocabulário da teoria da informação e da cibernética: «Ovid’s […] account of the material creation moves quickly from morphogenesis, the origin of forms, to metamorphosis, the origin of transformations. The universal transition from chaos to order is perpetually confronted with an entropic pull back to chaos.» (Clarke, 1995: 31, ênfase nossa)

6 Foi em boa parte dessa lacuna que emergiu a literatura fantástica, como vimos acima na nota que alude a um texto de Robert Scholes.

7 Que, além da citação já enunciada, começa com: «A ficção científica tenta imaginar, frequentemente, como seria a vida num plano tão acima de nós como estamos acima da selvajeria; seu cenário é amiúde de um tipo que nos parece tecnologicamente miraculoso.» (Frye, 1957: 54)

8 Apenas três ilustrações, ambas retiradas da compilação de definições de Roger Schlobin, acima mencionado. Para os escritores Ben Bova e Lester de Rey, respectivamente, «Science fiction, when it’s at its best, serves the function of a modern mythology», (in Schlobin, 1981: 498), e «science fiction is the myth-making principle of human nature today» (idem: 500). Com uma argumentação mais elaborada, temos ainda o académico Mark Hillegas, que afirma «science fiction is the myth of machine civilization, which, in its utopian extrapolation, it tends to glorify» (idem: 503).

9 Poderá exigir-se, de modo recíproco, que uma obra destinada a uma leitura exclusivamente alegórica deva submeter-se, em nome de uma melhor «suspension of disbelief», a critérios de verosimilhança ou mesmo de cientificidade, habitualmente exigidos à ficção científica? Não se correrá o risco de que estes neutralizem o seu poder alegórico? Que resta d’A Metamorfose de Kafka se sujeitarmos a novela ao teste de Nabokov, que Marina Warner relata em Fantastic Metamorphoses, Other Worlds? «Vladimir Nabokov, uniquely both distinguished lepidopterist and fabulist, wanted to establish exactly which species of insect Kafka is evoking […] Nabokov concludes that the bug is simply “a big beetle” […] Gregor should have realized that as a beetle he had a pair of wings hidden under “the hard covering of his back”, which could have carried him for miles and miles in a blundering flight.» (Warner, 2002: 115)

10 Esta premissa não deve de todo ser assumida hoje em dia, pois o género adquiriu entretanto uma maturidade que, pelo menos no que respeita ao nível de formação literária dos respectivos autores, o retirou do ghetto em que ainda se encontrava até à década de 60.

11 Cf. em especial Warner, 2002, que inclui algumas reproduções de gravuras (em especial dos séculos XV e XVI), destacando-se uma de Leonardo da Vinci e outra de um discípulo de Miguel Ângelo.

12 O conhecimento científico tornará obsoleta qualquer interpretação literal desta sequência, como salienta Marina Warner: «the monstrosity of being hatched, as in the myth of Leda and the swan, fades within this fresh understanding of natural development» (Warner, 2002: 24). Mas nem é preciso abandonar o contexto da Grécia antiga para sobre ela cair o cepticismo; é ainda Warner quem recorda que na peça de Eurípedes sobre Helena de Tróia, é a própria, ao contar a história da sua origem, que levanta a hipótese de não ser mais do que uma lenda (cf. Warner, 2002: 98).

13 Se necessária for a apresentação dum momento intermédio, podemos encontrá-lo em Dante, ainda que, como bem nota Marina Warner, o contexto cristão medieval seja o principal responsável pela associação entre o Mal (no caso, a hubris) e a impermanência da metamorfose: «In medieval eschatology, metamorphosis by almost any process belongs to the devil’s party; devils, and their servants, witches, are monstrously hybrid themselves in form, and control magic processes of mutation. […] In the Inferno, Dante envisions for the damned highly inventive and fantastical processes by which the sinners are condemned to lose identity in an eternal circle of annihilation […] ceaselessly tormented by change.» (Warner, 2002: 35-36).

14 Que abreviaremos daqui em diante por Jekyll & Hyde.

15 Cf., por exemplo, Screams of Reason: Mad Science and Modern Culture, de David J. Skal (Skal, 1998).

16 Mesmo tendo de deixá-la em nota de rodapé, é de rigor uma rápida descrição desse mesmo corpus. Numa primeira recolha, que de momento ultrapassa ligeiramente os 100 títulos de contos e noveletas com primeira edição entre 1870 e 1970 (com particular incidência depois de 1926, data em que a genre science fiction nasce como categoria editorial), identificámos narrativas cuja temática pudesse ser associada aos grandes campos semânticos que caracterizam os discursos em torno da cibercultura: por um lado a criação, por via tecnológica, de mundos virtuais nos quais os indivíduos fiquem imersos; por outro – aquele que é aqui relevante –, a facilitação de uma nova forma de subjectividade a que possa chamar-se, em particular se por via de alterações físicas, «pós-humano». Ao isolar, deste segundo campo semântico, as alterações que podem ser consideradas como metamorfoses, identificámos 10 títulos, publicados entre 1939 e 1970, dos quais apresentamos aqui uma selecção ainda mais restrita. Como veremos, em todos, mesmo que em diferentes graus e com distintas articulações, estão presentes os ingredientes atrás identificados: o duplo e a hubris.

17 Diz um dos «escultores» para a sua colega de profissão: «“This chap wrote a story called ‘Dr. Jekyll and Mr. Hyde’. Only both of them were really one person – schizophrenia, you know.”» (West, 1939: 74)

18 Não é por acaso, recordemos, que dos sete pecados capitais o mais grave é a soberba, no limite o desejo de emular o próprio Deus.

19 Note-se a coincidência (talvez influência) do termo «sculptor», presente no conto de Wallace West, mencionado acima.

20 Que não é mais do que a Astounding Science Fiction dos primeiros dois contos aqui apresentados. Depois de um período de transição entre Fevereiro e Setembro de 1960, durante o qual a palavra «Analog» se vai tornando mais visível sob o título anterior, muda definitivamente de nome em Outubro desse ano, para Analog: Science Fiction Science Fact.

21 Mas susceptível a ulteriores metamorfoses, ou a um regresso à forma inicial.

22 Cf. também, sobre a dissolução da identidade, «Metamorphosis, Science Fiction and the Dissolution of the Self», de Enrico Giaccherini (2005).

23 Não há infelizmente espaço neste artigo para desenvolver essa conexão. Basta dizer que ela é aprofundada pela própria Marina Warner ao longo do capítulo intitulado «Doubling», onde traz para primeiro plano, por exemplo, a influência da fotografia – também ela uma obsessão sua – na obra de Lewis Carroll e na definição daquilo a que chama o «eerie state» (cf. Warner, 2002: 179-196). Jekyll & Hyde, em contrapartida, recebem um tratamento demasiado abreviado.

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