Porquê Ler o que nunca será um Clássico?

Breve artigo para a revista Agio (Edições Artefacto/Sociedade Guilherme Cossoul), n.º 1, Fevereiro de 2011, pp. 101-105.

Agio: Revista de Literatura, n.º 1, Fevereiro de 2011, Lisboa, Edições Artefacto, pp. 101-105.

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Com um agradecimento ao Paulo Tavares pelo convite.

 

Acho imensa piada a todo o tipo de listas com os «melhores livros» de sempre, seja pelos títulos que delas constam seja (como se verá adiante) pelos que não chegam a integrá-las. Aos mais assíduos podemos reservar o epíteto de «clássico», assumindo que se lhes aplica o famoso critério de Italo Calvino: são aqueles que nem da primeira vez que se lêem (primeira de muitas, presume-se) estão a ser «lidos» pela primeira vez. São os livros de que se presume possuirmos alguma informação — mesmo que mínima —, pois fazem parte do cânone humanista do qual não nos é permitido escapar, muito menos alegando ignorância. É por sabermos algo acerca da figura de D. Quixote, por exemplo, que nunca a leitura da obra-prima de Cervantes será inocente. Mais do que isso: se sobre ela há um sem-número de interpretações, podemos presumir também que cada releitura trará algo de novo. E se porventura nos sentirmos defraudados, força-nos o senso comum a reconhecer que é connosco, não com a obra, que algo de errado se passa.

Uma das mais famosas listas, a de Harold Bloom, possui três características que devem ser enfatizadas, e que se reforçam mutuamente: 1) é por ele nomeada como «o cânone ocidental», expressão que reconhece a sua contingência cultural, pois traduz a perspectiva do Ocidente, que não deveria arrogar-se como exclusiva; 2) cerca de metade dos títulos são do século XX, o que poderá ser uma das razões que explica por que Bloom preferiu evitar o termo «clássico»; e 3) sobre estes últimos títulos paira a advertência de que a sua escolha foi um exercício profético cujo acerto só o tempo permitirá julgar.

Nem que seja só por esta confissão de Bloom, somos forçados a concluir, e ao contrário de um certo modismo de expressão anglo-saxónico, que não há «clássicos instantâneos». É preciso deixar que o tempo faça a implacável triagem entre as obras que, concedamos, até podem ser de grande relevância durante um breve período, e aquelas que serão capazes de transcender essas contingências temporais. Contudo, essa mesma ideia de que é possível alcançar a longevidade implica admitir que continuamos a fazer parte duma concepção do mundo humanista, mundovisão essa que sustenta conceitos como o de «cultura geral» ou o de «literatura universal», por mais que tenham vindo a multiplicar-se — pelo menos desde Nietszche — os diagnósticos dum esgotamento dos ideais do humanismo.

Se a estes acrescentarmos o pressuposto de uma ligação indissociável entre o humanismo e a tecnologia da escrita, como o fazem autores tão diversos como Marshall McLuhan e Peter Sloterdijk, somos inclusive obrigados a confrontar-nos com o esvaziamento dessa potencial eternidade dos clássicos. Estaríamos então perante a iminência de alguma forma de pós-humanismo, causado — ou ao menos facilitado — pelo declínio da escrita em favor dos (multi)meios digitais, sendo a cultura erudita não mais do que uma sobrevivência condenada, no limite, a tornar-se mera curiosidade museológica. Mesmo sendo essa uma afirmação acerca de cuja sustentabilidade preferimos aqui calar-nos, há um outro pressuposto que julgamos merecer um pouco mais de atenção. Imagine-se, independentemente desse eventual anacronismo de uma formação humanista, que as estratégias e políticas de formação dos indivíduos se restringiam à promoção de um conhecimento aprofundado dos clássicos. Ainda que — mesmo nos nossos dias — pudéssemos tomar esse objectivo como concebível e até mesmo como louvável, assumi-lo como exclusivo significaria ignorar toda uma panóplia de «textos» — as aspas servem aqui para nos demarcarmos desse privilégio que ainda é dado à escrita — que pulsam de contemporaneidade, e mesmo aqueles que, não sendo já tão contemporâneos mas que também ainda não estão suficientemente maduros para serem instituídos como clássicos ou para que lhes seja negado esse estatuto, de algum modo contribuem para uma melhor percepção da condição actual.

Perante essas duas possibilidades-limite, que nem por isso têm de ser mutuamente exclusivas, defendo que se dê pelo menos igual oportunidade à «leitura» (mais uma contaminação do universo literário) do novo, do «popular» — na acepção lata do termo —, até mesmo do que é menosprezado por uma atitude erudita porque, digamo-lo sem receio, nunca será clássico. Tal não significa uma ausência de critérios; aliás, boa parte do trabalho de selecção arrasta consigo a necessidade de justificar a relevância da escolha e até, por que não dizê-lo, uma atitude com algo de elitista. Penso por exemplo — escusando-me com isso a enunciar os meus próprios critérios — em toda a bagagem argumentativa de que Darko Suvin se socorria em meados dos anos 70 ao defender a «dama» da Ficção Científica. Sintetizo-a, para quem não a conheça. À boa maneira marxista, só seriam dignas de atenção as expressões artísticas capazes de dotar o receptor de um olhar crítico sobre o mundo (aquilo a que chamava a dimensão «cognitiva»), o que desde logo obrigaria a excluir todo o tipo de «pseudo-literaturas» que arremedam o realismo, mas também — pelo predomínio da função escapista — o género da Fantasia. Depois de resgatado o verdadeiro realismo (tarefa antes empreendida por Lukács também num quadro conceptual marxista), haveria contudo uma outra opção estética (que Suvin traz para primeiro plano baseando-se nos formalistas russos e em Brecht) ainda mais eficaz na medida em que, ao apresentar mundos distintos do do quotidiano, promoveria um efeito de «estranhamento». A Ficção Científica é por isso, nas suas palavras, a arte do «estranhamento cognitivo»; a Fantasia e o Realismo são deficitários porque só estão dotados, cada um à sua vez, de uma destas características (já para não falar no pseudo-realismo, que não possui nenhuma e é portanto mero refugo).

Mesmo admitindo algum excesso de zelo da parte de Suvin — ou excesso de doutrina, para quem queira fazer essa interpretação menos abonatória —, a verdade é que encontramos aqui uma defesa bastante sólida (entre outras possíveis) de um género que, à data mas ainda hoje, não costuma cair nas boas graças da crítica nem da academia. Podemos, de resto, desde que com o cuidado de não o tomar em exclusivo, reciclar o critério de selecção como critério de apreciação: uma obra de ficção científica a que falte essa qualidade de «novum» (mais um termo de Suvin) é uma obra falhada. Todas as outras têm algo a dizer-nos, e deveríamos então dedicar-nos a descobrir que «algo» é esse, colocando a ênfase — como se propôs acima — nas ligações à situação presente.

Mau grado a ilustração escolhida, fruto de uma escolha que apenas se deve a uma maior familiaridade com o género por parte do autor destas linhas, este resgate daquilo que nunca será um clássico não tem de restringir-se à ficção científica. No limite, até os «romances cor-de-rosa» que Suvin desprezava podem ter algo a dizer-nos, desde que a sua análise saiba percorrer os três vértices dum triângulo composto pela obra, pelas suas condições de produção (sociais, de mercado, etc.), e pelo acto de recepção (passivo, activo, subversivo, …) cuja responsabilidade é do leitor. Trata-se aliás de um trabalho a que algumas correntes dos cultural studies têm dado o devido empenho — ainda que por vezes fragilizadas por uma hiperespecialização que delas dá uma imagem fragmentada, se não mesmo caricatural, se pensarmos em coisas como os «Buffy studies». Evitando a sua apologia demasiado declarada, queremos contudo rematar esta defesa da validade da cultura «pop», «industrial», «mediatizada» (ou outro adjectivo que sirva) lembrando dois dos mais famosos ensaios de Susan Sontag, pois é na tensão entre estes que acreditamos encontrar-se o equilíbrio entre a suposta perenidade dos clássicos e a (mesmo que tantas vezes vazia) actualidade daquilo que poderá nunca vir a ganhar esse estatuto.

Em «Against Interpretation», Sontag propunha que se deixasse de procurar nas obras artísticas o seu presumível significado mais ou menos oculto. Justamente por sermos animais que anseiam por um significado, impõe-se que essa pulsão seja refreada, devendo em vez disso procurar-se aquilo que a obra é: contra a interpretação (e em vez desta), a descrição. Acrescentamos nós, cruzando essa intuição com uma outra — só superficialmente contraditória — que surge nalgumas das suas «Notes on Camp»: só depois de identificado aquilo que a obra é, e em que espécie de diálogo entra (ou recusa a entrar) com outras obras, podemos estabelecer ligações entre esta e a multiplicidade de contextos cruzados em que surge, ou em que pode — num momento futuro — ser «relida». Quando a excelência da dimensão estética leva a que todas as outras a ela se subordinem, poderemos estar perante um clássico, mas a falta dessa excelência não pode servir como justificação para que lancemos uma obra no esquecimento.

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