Normas para o Parque Cyborg

Característica-chave do imaginário da cibercultura, a ideia de simbiose entre máquina e humano tem as suas origens no universo da ficção científica. Apesar de contar com algumas décadas de história, é contudo relativamente recente: antecede-a a noção — mais simples — da máquina como algo autónomo, no limite dispensando a própria presença do humano. Concentrar-nos-emos, nesta comunicação, no percurso entre essas duas imagens, quer tomadas como topoi literários quer como elementos integrantes de uma cultura mais vasta.

Comunicação apresentada no ICNC’2001: International Conference on Network Culture (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, organização do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens), a 31 de Outubro de 2001, publicada na Revista de Comunicação e Linguagens, n.º extra («Cultura das Redes»), Lisboa, Relógio d’Água, 2002.


 

Revista de Comunicação e Linguagens, n.º extra («Cultura das Redes»), Lisboa, Relógio d’Água, 2001, pp. 115-124.

 

«[…] pois eu vou, talvez, repetindo o que ele fez, chegar a fazer o contrário — ou, de preferência, outra coisa.»

Jacques Derrida, De um tom apocalíptico adoptado há pouco em filosofia, p. 16

 

Como não é possível começar sem tomar a palavra de outros, (des)multiplicando-a e pervertendo-a, comecemos por assumir esse gesto. Ao fazê-lo, tornamo-nos imediatamente o nó de uma rede que nem construímos nem sabemos como foi construída, mas que Sartre — primeiro, sem contar todos os outros antes dele — e Sloterdijk — mais recentemente — definiram como sendo a essência de uma cultura literária ou, de preferência, humanista. O humanismo é, dizem-nos, a primeira forma de «telecomunicação», um «vírus contagioso» (Sloterdijk, 1999a, p. 20) e particularmente resistente que atravessou séculos e foi responsável pela cultura ocidental tal como a conhecemos — melhor, que foi responsável pela cultura ocidental em todas as suas formas porque se confunde com esta. Agora que estamos na era de uma outra telecomunicação, que aparentemente se opõe à primeira, como reavivar, se não a palavra humanismo — que talvez já tenha sido posta de lado, como já o notava George Steiner a propósito da «cultura» –, pelo menos algo dessa ideia originária de uma série de cartas sem destinatário específico, de um diálogo lançado sem esperança de resposta mas ambicionando um leitor universal? E se no seu início tal tarefa foi predominantemente involuntária, por que não assumi-la de forma deliberada, com consciência de todas as suas implicações?

Não será demais começar por atentar no modo como esta nova telecomunicação — a de Marconi — foi moldada pela técnica a ponto de se confundir com ela. A chave que desvenda o mistério é já de todos conhecida, chama-se teoria da informação. Não importa portanto explicá-lo — todos os anos se reconta a história –, mas sim averiguar o que a sua descoberta trouxe ou pode vir a trazer de novo para o antigo humanismo. Refiro-me nomeadamente (mas não exclusivamente) a três elementos da comunicação (em particular a comunicação à distância) que a teoria da informação, de forma muito sub-reptícia, não só modificou como recuperou para o primeiro plano.

Antes de mais, algo que o próprio Sloterdijk refere de passagem (idem, p. 20): a possibilidade de qualquer mensagem, à medida que é copiada e reenviada, poder vir a sofrer de «erros de cópia» que criam alterações, incompreensões de parte a parte e, o que constitui o principal fascínio para alguns dos potenciais receptores, a faculdade de, sob a justificação de que as distâncias do tempo e do espaço se apagam, fazer de uma misreading uma acção que intervém no tecido social. Sloterdijk (idem, ibidem) refere-se-lhe como «o seu fascinante feitiço criador de amigos», mas por que não vê-lo como criador de súbditos? Técnica e teoria conjugaram-se, por intermédio da teoria da informação, para tornar tais erros estatisticamente menos prováveis, mas, ao mesmo tempo, nos casos em que ocorrem, a sua disseminação — e portanto a deturpação daí decorrente — tornou-se muito mais rápida e muito mais alargada. Se a globalização é um facto, não deveríamos tentar compreender a forma que está a tomar como o resultado de múltiplas deturpações de um eventual sentido originário, perdido se não fosse desde o seu início ilusório?

A par desta novidade, a potenciação, aos limites do possível, da autonomia da mensagem relativamente ao emissor. Curiosamente, é já em Aristóteles que podemos adivinhar o problema aqui envolvido quando, nos textos sobre a retórica, associava um dos três elementos presentes na comunicação (justamente aquele a que actualmente chamamos «mensagem») à argumentação baseada no logos, i. e., a estrutura lógica. Como é possível perceber agora, é a autonomização da estrutura lógica (aquilo que é transmitido e transmissível, para não dizermos mensurável, por contraste com as idiossincrasias dos intervenientes no processo comunicativo) que leva à autonomização da mensagem. Algo aparentemente tão evidente só começa a mostrar a sua relevância (e a revelar, retroactivamente, que os seus efeitos se fazem sentir há muito) quando, para lá da anunciada «morte do autor», este se vê reinventado como algo que emerge da própria mensagem. É o que ocorre na descrição feita por Steven Johnson (Johnson, 1997, pp. 156-162) de uma pesquisa linguística assistida por computador: partindo do pressuposto segundo o qual Shakespeare, ao escrever cada nova peça enquanto representava uma das personagens da peça anterior, introduzia inconscientemente contaminações dessa personagem em todo o novo texto, foi possível, utilizando métodos de análise estatística, resolver o centenário enigma de saber que personagens representou. Tanto quanto Shakespeare, poderemos de alguma forma considerar algumas das suas personagens co-autores? Ou em vez destas, numa situação alternativa, há muito aguardada e por vezes receada, os artefactos técnicos que transcendem a própria «informação» que é suposto tratarem para se tornarem uma espécie de «gerador de mensagens» — Inteligência Artificial, avatares, geradores automáticos de texto, bots, etc. Aquilo a que chamávamos humanidade (o «auditório universal», mas também a sua fonte) alarga-se — e começa aqui a ter de admitir-se a ideia de pós-humanismo — a novas populações, existentes apenas como programas numa rede mas capazes de interferirem, de forma muito mais activa do que qualquer técnica anterior, na conduta humana e no próprio modo como esta se concebe a si mesma.

Referi já o auditório, mas é impossível não atentar mais um pouco nesse último elemento. Recordo a forma como Sloterdijk o coloca no seu polémico ensaio (idem, p. 21): «sem a boa disposição dos leitores romanos para estabelecer amizade com os envios dos gregos a terras longínquas, estes teriam carecido de destinatários; e se os romanos, com a sua excelente receptividade, não tivessem entrado no jogo, os envios gregos jamais teriam chegado ao espaço europeu ocidental que ainda hoje habitam os interessados no humanismo». Se nos afirmamos interessados no agora «pós-humanismo», é pois necessário, mais do que um espírito distanciado de quem olha demasiado cepticamente e demasiado reprovadoramente, que se assuma de novo essa receptividade; que — é impossível não aproveitar a expressão de Sloterdijk — se entre no jogo.

O que aqui se pretende é então, mesmo correndo os riscos de parecer demasiado entusiástico (não o sou), demasiado distanciado da realidade presente (não quero ser nenhum Júlio Verne nem nenhum Alan Turing), demasiado profético e afinal desprovido de fundamentos, entrar no jogo e tentar descobrir, acompanhando Sloterdijk mas num percurso fantasmático do seu, que normas podem reger este parque de maior extensão (mas nem por isso de maior abertura). Algumas dessas normas surgirão enquanto tal pela sua inevitabilidade — a palavra physis aplicar-se-ia talvez com alguma adequação –, outras por uma intervenção humana que se presume desejável, mesmo pondo de parte qualquer dependência de uma ética — e, para retomar a nomenclatura grega, falaríamos neste caso de nomos. De forma similar à oposição de Searle entre regras descritivas e regras constitutivas, ora se descrevem normas intrínsecas cuja existência nos limitamos a reconhecer, ora se propõem normas que, por motivos de razoabilidade, deverão ser aceites como representando o lugar do preferível1.

 

Característica incontornável do humanismo é o facto de este depender, para a sua existência, de uma acção à distância (cf. idem, p. 23). Esta subsistência ao espaço que se redobra numa subsistência ao tempo não se processa contudo de forma simples e linear. Para começar, nem todos os receptores são igualmente afectados por este apelo — a interpelação que provém do texto2. Aqueles que o são e que transformam essa interpelação num acto intencional constituem, de resto, uma minoria, ou, nas palavras de Sloterdijk (idem, p. 23), um «círculo de “iluminados”» que entre si, ao partilharem um conjunto canónico de textos que por ora podemos imaginar como uniforme, tomam parte de uma «fantasia sectária», de um «fantasma comunitário». Outros há que vão constituir-se como destinatários deste mesmo humanismo, mas apenas como receptores em segunda mão daquilo que os leitores autorizados decidem transmitir-lhes, muitas vezes dependendo de actos de soberania em que os textos são reduzidos a instrumentos tanto quanto já tinham sido reduzidos no seu número. Nada impede contudo que a história da alfabetização e da escolaridade universal e obrigatória possa ser vista como a história de como, paradoxalmente, os instrumentos de uma relação autoritária/autorial podem voltar-se contra ela, à maneira do Caliban de A Tempestade3.

No entanto, nem mesmo as correntes pós-colonialistas nos cultural studies conseguem assegurar-nos de que a assimilação do (ou a sublevação contra o) humanismo se faz sempre de forma intencional. Por outras palavras, qualquer indivíduo pode ser tomado como parte integrante de uma cultura humanista porque, ao ser socializado, incorporou os seus princípios (éticos ou outros), mas quem pode garantir que deles possui um conhecimento reflexivo? É portanto de desconfiar sempre que se fala, como ocorre com a expressão «sociedade do conhecimento», de generalização do acesso à informação, pois esta não é, como nunca foi, incompatível com múltiplas formas de discriminação, que assim melhor se mascaram. A esta primeira cisão no interior do humanismo, que põe em causa a sua pretensa universalidade, deve acrescentar-se uma segunda, esta última ameaçadora da sua unidade. Não sendo concebível um humanismo sem que se determine, por entre a multiplicidade de textos que o compõem, um conjunto de «leituras canónicas» (idem, p. 23) que assumem um estatuto privilegiado, é de assinalar que estas fogem ao controlo do próprio humanismo ou, melhor, que se subordinam a um outro tipo, muito mais localizado, de controlo. A falar-se, como o faz Sloterdijk, de «projectos expansionistas e universalistas» (idem, p. 24), dificilmente se concede que alguma vez se tenha tratado de um público verdadeiramente uniforme e universal. Por mais que conseguisse criar «eficazes ficções de públicos leitores» (idem, ibidem), por mais que, como vimos imediatamente acima, os seus mais autorizados representantes tivessem tido «pleno poder para impor à juventude os clássicos obrigatórios» (idem, p. 27), os limites do humanismo (de cada um dos muitos humanismos) acabaram por desenhar-se como fronteiras de Estados-nação nos quais essa mesma ideia, a de nação, quase invariavelmente se sobrepôs ao carácter «transnacional» a que o humanismo desde o seu início aspirou. Apesar de um núcleo aproximadamente invariável — aquele que remetia para as suas origens greco-romanas –, as diferenças não tardaram, e foi nelas, mais do que nas semelhanças, que o expansionismo abdicou da sua vertente universalista.

Ora, o que pode hoje em dia receber o rótulo acusatório de «projecto expansionista e universalista» senão a técnica4? E se os humanos se vêem cada vez mais desprovidos do que nunca neste poder de imposição, em contrapartida talvez hoje os limites tenham já sido quebrados, e o campo de actuação podido tornar-se finalmente global5. Nada que McLuhan não tivesse já previsto, no momento em que referia a íntima e inextricável associação entre cultura literária e Estado-nação, a ponto de, com o declínio da primeira, o segundo tender para ser também substituído por uma nova configuração mais ubíqua e abrangente. Deixo a uma teoria das redes a tarefa de, melhor do que eu, conceptualizar e modelizar matematicamente este processo de expansão, revelando nomeadamente se há aqui alguma relação de causalidade ou se se trata de um mero resultado, mesmo que imprevisível, das condições iniciais deste «sistema».

 

Ao atentar no significado da evolução técnica (e política) na primeira metade do século XX, Sloterdijk acerta em cheio (cf. idem, pp. 30 e segs.): o «humanismo pós-bélico» (idem, p. 31) foi uma espécie de canto do cisne, uma resposta pouco à altura do tempo, que teve quando muito a vantagem de decorrer de uma consciência mais aguda de que todo o humanismo serve para «resgatar os homens da barbárie» (idem, ibidem), algo tanto mais importante quanto esta tinha acabado de atingir o seu cúmulo (cf. a famosa frase de Adorno, segundo quem «depois de Auschwitz não há poesia possível»). Se digo que foi pouco à altura do tempo, não há contudo culpas a atribuir: demasiado tarde para um reavivar do humanismo bimilenar e exangue, demasiado cedo para um perfilhamento por parte de uma técnica que não tinha ainda «levedado» o suficiente.

Não creio portanto — como não o crerá Sloterdijk — que seja um acaso, por exemplo, que a Carta sobre o Humanismo, de Heidegger, date de 1946, mas só em 1962 tenha sido pronunciada a conferência que veio a ser intitulada como «Língua de Tradição e Língua Técnica», ainda que aquilo que no primeiro texto está em perigo (e portanto a precisar de uma martelada heideggeriana) continue estranhamente em perigo no segundo, como se a língua técnica não pudesse ser algo mais do que a ameaça por excelência a qualquer tipo de humanismo pré ou pós-heideggeriano. O que talvez seja indiferente se continuarmos a assumir que a única forma de combater a barbárie consiste em «tomar sob o controlo as […] tendências assilvestradoras do homem» (idem, pp. 31-32).

Admita-se portanto a verdade que nos ensina O Deus das Moscas de William Golding, seja na versão sistémica do combate à entropia, seja na platónica da «domesticação do homem» (idem, p. 32 e ainda todo o polémico final do ensaio, a partir da p. 72), mas não se veja nela a impossibilidade de outra alternativa que não a do controlo mais ou menos centralizado. Até porque o «centro de comando» tão depressa propõe o amansamento pela erudição quanto o entretenimento industrializado6.

Contra todas as expectativas, Heidegger e principalmente Sloterdijk podem dizer-nos algo sobre como enfrentar — no sentido de quem pretende concluir uma tarefa e não no de quem pretende derrotar um inimigo — aquilo a que, à falta de melhor, chamaremos «pós-humanismo cyborg».

O auxílio de ambos reside fundamentalmente naquilo que marca a «diferença ontológica» entre o homem e os outros seres (ou entes?), o ter um mundo e estar no mundo. A partir do momento em que começamos a pensar sistemicamente, i. e., num quadro conceptual onde se fala de ambiente e não de mundo, a diferença tende a apagar-se, mas revela-se no seu lugar uma outra. É certo que o ambiente é o grande responsável, dum ponto de vista dinâmico, pela definição das próprias fronteiras do sistema, mas essas tendem a estabilizar numa espécie de «autonomia ontológica» onde a relação entre sistema e ambiente se faz essencialmente por intermédio de fluxos (de matéria, de energia, de informação). Ao contrário, do mundo nunca cortamos o cordão umbilical. Não poderá então admitir-se que algumas entidades artificiais podem ter um mundo, mais do que um mero ambiente? E poderão ou deverão ser elas também responsáveis pelo cuidado [Sorgen] desse mundo? A tarefa poderia mesmo ser considerada impraticável (para as entidades artificiais) se não fosse isso o que já ocorria com o humanismo (para os humanos): cuidar de um mundo do qual se desconhecem os contornos e mal se conhecem os conteúdos.

Que norma deve aqui aplicar-se que não fosse já aplicada? Prevenir ingenuamente a competição e o conflito de interesses é algo impossível, e se antes se podia ao menos contar com as salvaguardas que provinham das variantes nacionais do humanismo e da imposição de uma estratificação entre alta(s) e baixa(s) cultura(s)7, hoje o único elemento comum que atravessa as divisões é o da própria técnica, de que até os neo-ludditas partilham. Evito portanto repetir os incontáveis diagnósticos que apontam para múltiplas comunidades (virtuais) globais de pequenos nichos de interesses, acentuando em contrapartida o facto de que os protocolos técnicos que as sustentam evoluem assumem posições dominantes e/ou se extinguem de forma quase imprevisível, que só modelizações a posteriori permitem compreender. Atente-se, para tomar um exemplo já suficientemente discutido8, na explosão do protocolo de hipertexto HTTP (a base da World Wide Web), e na consequente ostracização para um pequeno canto do protocolo TelNet. Perante isto e perante a cada vez mais notória dificuldade, salvo para usos muito específicos, em impor conteúdos baseados em Flash face à simplicidade e flexibilidade do HTML, como continuar a aceitar que na «dupla missão» de «guarda do ser» e de «correspondência ao ser», como dizia Heidegger, ambas as tarefas partilham do mesmo grau de relevância quando este «ser» tem tanto de técnico quanto de humano? Apenas a última, aparentemente mais passiva se não tivermos lido O Trabalhador, de Jünger, parece ser de rigor hoje. Substitua-se portanto «ser» por «tecnologia» na seguinte passagem de Sloterdijk sobre o «habitar a casa da linguagem» que é o humanismo e tudo continuará a fazer sentido: «uma expectante escuta daquilo que o próprio ser [a própria tecnologia] se encarregue de dizer» (idem, p. 47, modificada). Mas sem interlocutores privilegiados, pois ainda de forma mais eloquente do que a demolidora crítica que Sloterdijk faz a Heidegger (idem, p. 48), nenhum indivíduo se pode autodesignar como «actual escrivão» da técnica. Nem mesmo Bill Gates9.

Ainda que deslocada do seu sentido inicial, a questão acerca de quem ou o que poderá domesticar o homem, pois o humanismo é domesticação, deve portanto voltar a ser colocada. Ao homem acrescentámos os dispositivos técnicos, que para mais parecem ter também ocupado o papel de agente domesticador cujo estatuto e tarefa alguns homens se auto-atribuíram, mas o perigo é o mesmo, «se até agora os esforços para autodomesticar-se levaram apenas e acima de tudo à conquista de poder sobre todo o existente» (idem, p. 52). Por outras palavras, é agora uma norma em sentido estrito (nomos) que se pretende, e com um objectivo bem claro: como assegurar e promover a diversidade, se até as modelizações matemáticas apontam para o crescente imperialismo de algumas alternativas enquanto outras mirram?

Indico um exemplo que muitos reconhecerão, importante por remeter para a cada vez mais debatida questão da multiculturalidade. O código ASCII10 era, como o A do nome indica, orientado para as grafias anglo-saxónicas, sem caracteres acentuados nem outras «marcas» de pertença a uma cultura. Mesmo o seu alargamento de 7 para 8 bits foi ainda uma solução de recurso, com todas as desmultiplicações existentes de «caracteres estendidos» que nunca se correspondiam — veja-se, por exemplo, o que acontece a uma simples cedilha ao internacionalizar-se. O Unicode, ainda não generalizado, permitirá superar estes inconvenientes, ainda que, dos seus 65536 caracteres, se tenha tido de descartar muitos dos ideogramas chineses. O facto de estes terem uma ocorrência estatística diminuta na língua de origem será uma desculpa aceitável?

Para atender a todas estas questões, afastamo-nos finalmente, nesta exposição, do caminho tomado por Sloterdijk, mesmo que as suas categorias continuem a ser a melhor bússola. Ao discutir esse «problema dos três corpos» entre barbárie, humanismo e imperialismo monológico (idem, pp. 50 e segs.), Sloterdijk demarca-se de Heidegger procurando indagar o que faz do homem um «habitante da casa do ser» tanto quanto um «habitante da casa da linguagem». A resolução passa pelo conceito de «co-habitação» (entre homens, entre homem e linguagem, entre homem e objectos, etc.). Por toda a parte, afirma, o homem «leva uma casa às costas» (idem, p. 60), mas é esta mesma casa aquilo que mais o condiciona.

O que era uma inevitabilidade para o humanismo (ou tão-só para o Dasein) deve portanto tornar-se na norma a seguir — uma espécie de imposição contra todas as imposições — quando o elenco de personagens activas se vê alargado, como afirmámos inicialmente, ao não humano. Poderá parecer uma enormidade recorrer a estes termos, e quero por isso evitar que este discurso se assemelhe ao daqueles que querem atribuir aos animais (e por que não às plantas, às rochas) direitos análogos aos humanos. Um dispositivo técnico não é um ser humano; a inteligência artificial é por ora, invertendo as categorias gramaticais, um artifício que se pretende inteligente; uma persona no ciberespaço não está ainda sujeita às mesmas leis (físicas ou biopolíticas) do indivíduo de carne e osso. Mas as interferências mútuas são inúmeras11 e cada vez mais profundas. Uma proposta, simultaneamente com algo de kantiano e algo de voltaireano, seria a de que as únicas limitações aceitáveis são as que previnem as tentativas de monologização de uma possibilidade sobre todas as outras, eventualmente aceitando-se também as formas de limitação que previnem outras limitações cujo âmbito seria mais alargado. Cândido? Talvez. Demasiado ambíguo? Sem dúvida. Todavia, não se vislumbra outra forma de responder à descrição alegórica de Nietzsche, aliás muito mais rica em implicações do que aquelas que aqui retiramos, sobre a «pequenez» imposta ao homem através das suas habitações: «a isso chamam resignação. […] Converteram o lobo em cachorro e o homem no melhor animal doméstico do próprio homem» (Nietzsche, Assim falava Zaratustra, cit. por Sloterdijk, 1999a, pp. 61-62). O que deve evitar-se, tanto tendo em conta aqueles que querem domesticar quanto aqueles que deixam que os domestiquem quanto ainda — talvez o caso menos referido até aqui — aqueles que recusam toda e qualquer domesticação.

Deparamo-nos então com um aparente beco cuja saída tem de ser procurada por tentativas, ou, se se quiser, para aliviar um pouco um discurso demasiado filosófico, uma situação que pode ser descrita com o vocabulário da teoria da informação: entregue a si mesmo, o sistema é conduzido à entropia ou a um estado (resultante duma autopoiese) imprevisível e quase sempre indesejável, entregue a uma unidade de controlo demasiado impositiva, que não tem de ser humana, cristaliza numa forma totalitária. Num «entre-dois» (barbárie e totalitarismo) estava o humano; neste «entre-dois» (entropia e controlo) está o cyborg.

 

Bibliografia

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Steiner, George

1971 No Castelo do Barba-Azul: Algumas Notas para a Redefinição da Cultura, Lisboa, Relógio d’água, 1992.

 

Notas

1 A proposta aqui apresentada é, como se verá, simultaneamente próxima da de Lawrence Lessig em Code and other Laws of Cyberspace e dela divergente na forma de levar a bom termo as suas implicações. A distinção que aqui proponho entre physis e nomos, por exemplo, apresenta claras semelhanças entre o «West Coast Code» (o código enquanto arquitectura de um sistema) e o «East Coast Code» (o código enquanto conjunto de princípios legais). Divirjo no entanto no modo como o legalismo («East meets West») poderá vir a triunfar (cf. Lessig, 1999, pp. 53 e segs).

2 Cf. a forma como Mark Poster retoma este conceito de Althusser em A Segunda Era dos Média (1995), particularmente nas pp. 95 a 109.

3 Cf. António Pinto Ribeiro, 2000.

4 Muito mais a economia do que a técnica, dirão muitos. Mas onde a técnica se basta a si própria, a economia dificilmente teria concretizado a tão badalada globalização sem o seu auxílio.

5 Por mais que, em simultâneo, esses limites se tenham também estreitado, como o prova a constante contraposição entre «global» e «local», que ocorre por exemplo no conceito de «comunidade virtual».

6 Ainda Sloterdijk, desta vez sobre a religião no conjunto de entrevistas a Carlos Oliveira publicadas sob o título Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária: «os redentores não se ocupam apenas de libertar os outros mas também de os voltar a pôr em cadeias» (1999b, p. 92).

7 Que, de resto, também pode ser compreendida sistemicamente.

8 Trata-se de um exemplo caro a António Machuco Rosa (cf. Machuco Rosa, 1998 e 2000).

9 Cf. Graça Rocha Simões, 1999.

10 American Standard Code for Information Interchange.

11 Cf. Katherine Hayles, 2002.

 

Texto: Jan/02

© Jorge Martins Rosa