Reality Strikes Again

Sempre que às artes tecnológicas é aplicado o prefixo «ciber», é inegável a influência, em maior ou menor grau, do subgénero da literatura de ficção científica conhecido como «cyberpunk». No entanto, quer artistas quer críticos — conhecedores da história da arte mas dificilmente da história da ficção científica — atribuem-lhe uma autonomia que obviamente não possui, como se tivesse surgido ex nihilo e, suspenso num limbo, não possuísse quaisquer relações de «filiação» ou de «afinidade» literária.

Procurar-se-á nesta comunicação desfazer esse equívoco, enquadrando o cyberpunk no contexto mais alargado da história da ficção científica.

Comunicação apresentada nos Encontros de Arte e Comunicação (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, organização do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens), a 3 de Junho de 2005, posteriormente publicado na Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 37 («Arte e Comunicação»), Lisboa, Relógio d’Água.

Pequena Digressão sobre a História do Uso do Termo «Ciber» nas Artes

 

Encontros de Arte e Comunicação, Centro Cultural de Belém, 3 de Junho de 2005, organização do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens

Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 37 («Arte e Comunicação»), Lisboa, Relógio d’água, 2006-2007, pp. 149-166.

Texto realizado no âmbito de uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ao abrigo do programa POSI.

 

Por mais que se procurem evitar quaisquer querelas estéticas ou ontológicas, é inevitável que ocasionalmente seja reactivada uma velha tensão que, bem vistas as coisas, nunca deixa de estar presente em qualquer tipo de prática artística: de um lado a atenção ao real — que não tem de ser confundida com a literatura realista, ainda que tenha o seu lugar de eleição na arte politicamente engagée — ; do outro o privilégio da intertextualidade: não tanto a «arte pela arte» quanto a consciência (exacerbada, se nos colocarmos na posição extrema) de que não se faz arte sem interiorizar a sua história e as suas convenções, que, ao estarem disponíveis para a sua própria subversão, são a real matéria de que uma obra é feita.

Ora, interessa-me particularmente averiguar, nas actuais artes «dos media», «interactivas», «tecnológicas», ou outro adjectivo que esteja à mão — e «ciber» é bem capaz de ser um dos mais apelativos –, qual o ratio entre cada um dos termos desta tensão. Procurando ser um pouco mais claro, afinal quanto há de «inspirado no real» e quanto há de «inspirado na tradição artística» nestas artes? A resposta — ou melhor, a hipótese de trabalho, porque não é conclusiva — pode ser desde já adiantada: ao contrário do que muitas vezes se pressupõe, por mais que estas obras de arte aspirem a ser reflexões, com muito de político, sobre uma realidade dominada pela tecnologia, o peso da componente a que chamámos «intertextual» é ainda o dominante. E assim é por um motivo fundamental, um motivo que faz lembrar uma velha crítica platónica à arte: muitas vezes as ciber-artes, quando acreditam (ou pretendem) estar a «imitar»1 a realidade, fazem na verdade uma imitação de segundo grau, e aquilo que imitam é a ficção científica. E, muito possivelmente, um subgénero muito específico desta, o cyberpunk.

 

1. A arma do crime.

Pode muito bem tratar-se duma ironia, mas a ficção científica2, que enquanto fenómeno literário continua a ser tratada como um género menor — apesar de, por via de meia dúzia de títulos que mereceram a consagração3, ser um pouco mais merecedora de crédito do que o policial, mas ainda assim abaixo da fantasy –, pode muito bem ter encontrado a melhor forma de entrar na Arte: camuflada noutros meios de expressão artística. Tome-se como exemplo o caso do cinema: com raras excepções como 2001 de Kubrick, praticamente só quando o resultado é de má qualidade e/ou dependente dos efeitos especiais é que um filme recebe a «etiqueta» de que é ficção científica; quando, em contrapartida, recebe a aclamação da crítica, essa pertença ao género é cuidadosamente recalcada4. O caso das ciber-artes — valha-nos isso — não é tão extremo: o reconhecimento da ficção científica como fonte de inspiração é algo habitualmente explicitado5, chegando por vezes a assumir alguma forma de homenagem a autores, obras ou temas associados a este género literário6.

E não é de admirar que assim seja. Afinal há um conjunto de «afinidades electivas» que levam a que a ficção científica assuma essa relevância no campo das novas artes: a) possui uma estreita ligação à tecnologia; b) na medida em que se trata de ficção apresenta a dupla vantagem de não estar limitada à tecnologia disponível (seja no modo extrapolativo, seja no modo especulativo7) e de, como toda a ficção, ter intrinsecamente uma potencialidade crítica que vai para além da facticidade imediata; e c) no que respeita ao potencial de reconhecimento por parte do público, a ficção científica é uma forma de literatura popular — por mais que se trate de um género para «iniciados», muita da sua imagética e dos seus lugares comuns são facilmente identificados por um público indiferenciado.

Há contudo uma ressalva a fazer no que respeita a esta aparentemente fértil associação entre ficção científica e artes tecnológicas, e ela decorre em boa parte do último ponto acima enunciado. Seria sem dúvida necessário proceder a uma análise empírica que confirmasse as intuições que teremos por ora de postular como adquiridas, mas o retrato que se segue é suficientemente preciso a um nível estatístico. O núcleo duro de leitores da ficção científica é a chamada fandom, que, ainda que conheça com uma extensão admirável a história, o «cânone», e o state of the art do género, tende a ser exclusivista (ou pelo menos conservador) nas suas preferências culturais; de modo complementar, as vanguardas artísticas — e pensamos por ora nas que se dedicam às artes tecnológicas — possuem também, de modo geral, uma formação que direcciona as suas preferências para a «alta cultura», absorvendo contudo da cultura mais pop os elementos que o circuito mais mediático de divulgação coloca à sua disposição. Dito de outra forma, não é de todo impossível que um «artista tecnológico» seja simultaneamente um aficionado da ficção científica (isto é, mais do que um mero admirador de alguns títulos e/ou autores), mas estatisticamente estes casos serão minoritários no universo de criadores destas novas artes.

Como pode então processar-se, na restante maioria dos casos, a ligação entre a ficção científica e as artes tecnológicas? A resposta é simples: através da imagem — algo distorcida, naturalmente — que os media e o senso comum transmitem da ficção científica e (para que o contacto com o género possa ser um pouco menos superficial) através dos autores e títulos que conseguiram8 romper a barreira do ghetto literário alcançando um estatuto de reconhecimento por parte do mainstream cultural. Sendo o cyberpunk um desses casos de sucesso — por intermédio de alguns dos seus autores, bem como pela pregnância dos seus temas –, não é de estranhar que se tenha tornado, mais do que um importante aliado, quase o paradigma das artes tecnológicas. Mas, muito possivelmente, à custa de se ter tornado a parte que é tomada pelo todo, a árvore que é confundida com a floresta. É esse equívoco que nos interessa agora desfazer.

 

2. No rasto duma literatura «menor».

Note-se que o objectivo, que nos vai ocupar o resto do artigo, não é o de negar a influência do cyberpunk sobre as artes tecnológicas (influência essa que nos parece suficientemente provada), e muito menos a de aspirar a qualquer normatividade estética que retiraria a esta corrente um estatuto legitimamente adquirido. Antes nos parece importante desmitificar a crença de que a influência tenha sido tão exclusiva e avassaladora (e hoje em dia tão inultrapassável) quanto aparenta. Ao assumirmos uma perspectiva «longa» da história da ficção científica, esperamos então que venham ao de cima aspectos menos imediatos dessa ligação, aspectos que permitirão reposicionar o cyberpunk no que respeita à sua relevância, nomeadamente pondo a claro que, a um olhar diferente, este passa de «influenciador» a «influenciado».

Não sendo de todo desejável ou pertinente contar toda a história da literatura de ficção científica, devemos contudo recuar a um importante período na redefinição das suas convenções genéricas: o final dos anos 60 e toda a década de 70, isto é, até cerca de 15 anos antes da explosão do cyberpunk.

Até meados dos anos 60, o domínio da SF pertencia às revistas — e portanto à ficção de extensão curta a média, das short stories às novellas9 –, daí em diante a tendência começa a inverter-se com a publicação em livro de novels originais (isto é, que não são republicações e/ou adaptações de obras de ficção inicialmente pensadas para os magazines). Esta seria só por si uma alteração significativa, pois condiciona aquilo a que poderíamos chamar a «distribuição de energias criativas» dos autores, em particular daqueles cuja escrita é a actividade exclusiva ou dominante10, permitindo, por exemplo, uma escrita menos «a metro» e mais atenta aos recursos estilísticos. Quase em simultâneo, o movimento New Wave, nascido — ou pelo menos assim baptizado — no Reino Unido mas depressa florescendo também nos Estados Unidos, reclama para a ficção científica um aumento da qualidade estética11, nomeadamente através da adopção de inovações estilísticas até aí sonegadas às formas de literatura «menor», bem como uma reorientação temática — como ficou patente na famosa expressão de J. G. Ballard, um dos expoentes do movimento: o «inner space» da mente e da subjectividade em vez do «outer space» da aventura interplanetária.

Foi também este o período em que a ascendência de John W. Campbell, o editor da Astounding Science Fiction (no ano de 1960 renomeada como Analog: Science Fiction/Science Fact12), começou a decair, até ao derradeiro golpe de misericórdia que coincidiu com a sua morte em 1971. Mas para se ter uma perspectiva de todo o «jogo de forças» neste campo ao longo dessa década — inclusive a cada vez menor relevância de Campbell nos standards da SF13 — é necessário proceder a um mapeamento dos seus grandes subgéneros.

Mencionámos já, numa nota ao texto, os termos hard sf e soft sf. Esta é uma útil forma de, em traços largos, apresentar uma das principais divisões que atravessam este campo literário. Mas é, pelo menos por agora, conveniente enriquecer a análise afinando o conceito de soft sf. Por um lado, o movimento New Wave trouxe tantas inovações que merece ser visto como um caso especial da soft sf; por outro, seguindo de perto não só uma terminologia geralmente aceite como, acima de tudo, os trabalhos empíricos de William Sims Bainbridge (Bainbridge e Dalziel, 1978; Bainbridge, 1986)14 a estes deve ser acrescentado um terceiro termo, umas vezes tomado como fronteira da SF, outras como a categoria mais englobante de que a SF seria um subconjunto, o de fantasy. Com estes três tipos-ideais, é possível traçar um mapa triangular, similar ao que aqui apresentamos, em que servem de vértice.

Mapa de similaridades na ficção científica.
Quadro 1: Mapa de similaridades na ficção científica.
(Fonte: Bainbridge, William Sims e Dalziel, Murray, «The Shape of Science Fiction as Perceived by the Fans», Science-Fiction Studies, n.º 15 (vol. 5, pt. 2), 1978, p. 170
© Science Fiction Studies)

Servindo-se de fórmulas da estatística, Bainbridge e Dalziel demonstram que, do ponto de vista da percepção e das preferências dos fans, se não mesmo da perspectiva dos profissionais que escrevem e publicam ficção científica, cada autor15 ocupa distintos pontos deste mapa. John W. Campbell e os autores que quase monopolizavam, particularmente no final do seu «reinado», a ASF representam de modo geral a área que mais se aproxima do vértice da hard sf16. Revistas como a Galaxy e a Magazine of Fantasy & Science Fiction, surgidas na viragem para os anos 50, ajudaram a formar o campo da soft sf, que se manteve pouco diferenciado até ao aparecimento da New Wave aproximadamente uma década mais tarde com a renovação do magazine britânico New Worlds.

Nos anos 7017 assiste-se, contudo, a uma clara «movimentação das tropas». A hard sf persiste, ou melhor, resiste como pode à mudança: possui um núcleo de leitores incondicionais e nem o desaparecimento de Campbell deixou decair este modo que muitos consideram a essência imperecível da SF. Apesar de um maior grau de conservadorismo, até a hard sf se vai adaptando aos novos tempos, ora aproximando-se do soft (cf. por exemplo, as novels de Frederik Pohl contempladas com prémios Hugo ou Nebula nos anos 70) ora inovando temática e estilisticamente (cf. Timescape, de Gregory Benford, também contemplado com um Nebula). A New Wave, contudo, perde nesta década muita da sua força enquanto movimento de contestação, não fugindo à regra do que costuma ocorrer às vanguardas: a revista britânica New Worlds, o seu «quartel-general», entra em falência técnica, e mesmo os autores conotados com o movimento, em ambos os lados do Atlântico, procuram seguir caminhos próprios — raramente abraçando a hard sf, mas ainda assim distribuindo-se ao longo da linha da soft sf, inclusivamente (caso de Michael Moorcock, o então editor da New Worlds) rendendo-se à fantasy.

Talvez a mais interessante mas na altura menos notada inovação é o aparecimento de algumas alternativas bastante heterogéneas à New Wave original. Michael Swanwick chama-lhes «pós-modernos»18, categoria onde inclui os cyberpunks mas que surge antes, com os seus rivais mais directos, os «humanistas». De modo geral de origem americana, estes últimos têm em comum uma formação académica — leia-se literária, pois na hard sf abundam, como seria de esperar, os autores com formação científica — acima do que era a regra no género: alguns começaram por ser associados à New Wave americana (p. ex. Samuel R. Delany, Roger Zelazny e Thomas Disch), outros são uma nova geração, na qual se contam, entre outros, escritoras não só do sexo feminino como declaradamente feministas (Joanna Russ, Vonda McIntyre, Anne McCaffrey).

Concedendo alguma imprecisão neste breve retrato, pode então dizer-se que o campo se encontra dividido entre uma hard sf ainda conservadora mas tendendo para uma lenta renovação e uma soft sf que, na sua heterogeneidade, alberga sobreviventes da New Wave, escritores ecléticos que alternam a sua produção entre a SF e a fantasy, as novas gerações e alguns não alinhados, e ainda históricos como Philip K. Dick ou recém-chegados como Joe Haldeman. Podemos portanto, sem grande risco, caracterizar esse final de década redistribuindo as três áreas propostas por Bainbridge e Dalziel apenas pelos dois «territórios» a que inicialmente nos referimos, o da hard sf e o da soft sf.

Duas grandes tendências na ficção científica: hard sf (abaixo e à direita da linha divisória) e soft sf (acima e à esquerda da linha divisória).
Quadro 2: Duas grandes tendências na ficção científica: hard sf (abaixo e à direita da linha divisória) e soft sf (acima e à esquerda da linha divisória).
(adaptado a partir do Quadro 1)

Perante toda esta variedade há contudo uma característica que consegue atravessar a quase totalidade do campo, unindo, sem que talvez disso se dêem conta, partidários quer da hard quer da soft sf e que podemos denominar como tendência para a intertextualidade. O fenómeno é praticamente uma regra no campo literário (e mesmo noutros campos artísticos). Mark Rose, num importante título sobre a génese e a evolução da ficção científica (Rose, 1981, pp. 1-23), descreve-o de forma bastante adequada: numa fase primária, um novo género recombina géneros anteriores até encontrar a sua identidade (sempre provisória); numa segunda fase esta identidade consolida-se, sendo estabelecido um cânone de obras, temas, tropos, etc.; finalmente, numa terceira fase estes materiais que entretanto se tornaram a característica distintiva do género são eles próprios alvo de um trabalho de desconstrução, como se se tratassem de metáforas de grande escala que o género utiliza como modo de auto-reflectir-se enquanto prática19.

Ora, o que tem justamente de ser dito sobre a SF é que, por mais que reclame que a sua especificidade enquanto «fiction» é a que provém da «science», essa componente científica não intervém de modo constante sobre as temáticas a ficcionar, e, quando tal ocorre, raramente se apresenta como o factor dominante20. Nos tempos da bomba atómica e da corrida espacial, o ambiente sociotécnico, como as franjas do tapete de que falava Quine, alimentou o género com novos temas a explorar, mas a partir da década de 60 este já tinha entrado totalmente na «segunda fase» descrita por Mark Rose. Naquilo a que podemos chamar o seu «modo clássico», fechou-se sobre si mesmo, isto é, sobre as suas convenções, e explorou até à exaustão todas as combinatórias possíveis, inovando quando muito através de recursos que eram já património de outros géneros literários e aproximando-se da fantasy; no «modo barroco» desconstruiu e expôs ironicamente essas mesmas convenções21 caminhando a passos largos para a «terceira fase». Em qualquer destes casos, a realidade social e científica foi recuando, com excepções duplamente pontuais — devido ao seu carácter esporádico e devido a apenas influenciarem aspectos específicos das narrativas –, para um plano mais do que secundário.

Aspecto ainda mais importante, até na hard sf o recurso à componente científica padeceu também de um cada vez maior fechamento sobre convenções taken for granted no que respeita à aceitação do público. Um exemplo que se tornará relevante à frente é a forma como a SF explorou a temática da Inteligência Artificial. Muito antes dos trabalhos pioneiros de Turing, Wiener e outros, já a ficção científica começava a criar a conhecida imagem — para não dizer cliché — dos computadores como «grandes cérebros». Num terreno afim, também os robots e andróides foram sendo conduzidos a uma dupla estereotipificação, entre a visão positiva e positivista do robot fiel, cujo cúmulo são as leis de Asimov, e a perspectiva catastrofista — talvez mesmo anterior à cunhagem do termo por parte de Čapek — do robot que se revolta contra os seus criadores. Esta polaridade é pelo menos suficientemente dialéctica para ter dado lugar a inovações, como a do robot que é tão «eficiente» ao serviço do homem que, paradoxalmente, o prejudica22 ou, caso mais complexo, a desconstrução dickiana das fronteiras que artificialmente postulamos entre humanidade e não-humanidade23, mas também aí é fácil perceber o quanto o jogo com as possibilidades literárias suplantou a inspiração — extraliterária — no state of the art da ciência. Antes de demonstrarmos o quanto (ou quão pouco) esse state of the art foi relevante para a «explosão» do cyberpunk, devemos contudo regressar ao panorama da ficção científica ao longo da década de 70.

3. A ocasião que fez o ladrão.

De todos os géneros populares consolidados no século XX — onde se contam o policial e a fantasy –, a ficção científica é muito provavelmente aquele em que há uma maior e mais viva interacção entre escritores, editores, público e crítica24. Os aspectos mais visíveis desta interacção são por um lado os encontros ou conventions, que reúnem acima de tudo fans, mas também, em proporções menores, representantes das outras «funções» no campo; e por outro os prémios atribuídos anualmente às melhores obras25. No caso dos prémios Hugo, aliás, ambos os indicadores convergem, dado que são atribuídos na assim chamada WorldCon, o encontro anual de fans dos Estados Unidos.

Uma análise aos prémios de melhor novel (ainda que qualquer outra extensão pudesse servir, da short story à novella) é por isso um indicador bastante aceitável para perceber o modo como o género está a evoluir durante um determinado período. Fá-lo-emos aqui cruzando os dois prémios mais antigos e mais prestigiados: o Hugo e o Nebula, que possuem de resto a vantagem adicional de serem atribuídos por dois grupos distintos: o Hugo por parte dos fans, o Nebula por parte dos escritores que são membros da Science Fiction Writers of America (SFWA).

Com base nos nomes que surgem no «mapa» acima, de William Sims Bainbridge e Murray Dalziel, de algum senso comum na extrapolação dos princípios presentes nesse estudo para outros autores que aí não surgem, bem como da sempre útil Encyclopedia of Science Fiction, podemos com alguma facilidade verificar como se distribuíram, entre o início dos anos 70 e o ano de 1985, os prémios de acordo com a grande divisão acima recuperada entre hard sf (a bold) e soft sf (em texto normal)26. Adicionalmente, o quadro que se segue permite também confirmar a proximidade de gostos e de critérios entre fans e profissionais: em 10 dos 15 anos as preferências coincidiram e a mesma obra recebeu o Hugo e o Nebula27. A tendência geral é a de uma alternância (em prémios ou em anos) entre a hard e a soft sf: se contarmos os prémios um a um — contando como dois os casos coincidentes –, e exceptuando por razões que se perceberão de seguida o vencedor de 1985, temos 16 prémios hard (8 Hugos e 8 Nebulas) e 12 soft (6 Hugos e 6 Nebulas), um quase empate: bastaria classificar Gateway de Frederik Pohl, um caso de fronteira, como soft sf para que o equilíbrio tivesse sido total.

Hugo Nebula
1971 (obras de 1970) Larry Niven, Ringworld
1972 (obras de 1971) Philip José Farmer, To Your Scattered Bodies Go Robert Silverberg, A Time of Changes
1973 (obras de 1972) Isaac Asimov, The Gods Themselves
1974 (obras de 1973) Arthur C. Clarke, Rendezvous with Rama
1975 (obras de 1974) Ursula K. Le Guin, The Dispossessed
1976 (obras de 1975) Joe Haldeman, The Forever War
1977 (obras de 1976) Kate Wilhelm, Where Late the Sweet Birds Sang Frederik Pohl, Man Plus
1978 (obras de 1977) Frederik Pohl, Gateway
1979 (obras de 1978) Vonda McIntyre, Dreamsnake
1980 (obras de 1979) Arthur C. Clarke, The Fountains of Paradise
1981 (obras de 1980) Joan D. Vinge, The Snow Queen Gregory Benford, Timescape
1982 (obras de 1981) C. J. Cherryh, Downbelow Station Gene Wolfe, The Claw of the Conciliator
1983 (obras de 1982) Isaac Asimov, Foundation’s Edge Michael Bishop, No Enemy but Time
1984 (obras de 1983) David Brin, Startide Rising
1985 (obras de 1984) WILLIAM GIBSON, NEUROMANCER

Quadro 3: Vencedores dos prémios Hugo e Nebula, de 1971 a 1985

Se nos concentrarmos agora apenas no ano de 1985, quando William Gibson triunfou em toda a linha com Neuromancer28, mais concretamente nos nomeados não vencedores, encontramos uma situação que é semelhante no que respeita à sintonia entre Hugo e Nebula, apesar de um muito maior peso da hard sf, que acreditamos ser conjuntural: Heinlein e Niven, ambos do núcleo mais duro da hard sf, surgem em ambas as listas, e estas são complementadas com Vernor Vinge (também um seu notável representante), Lewis Shiner e Jack Dann (estes dois últimos autores pouco significativos, tanto na sua produção quanto na filiação a uma das categorias); David Palmer e principalmente Kim Stanley Robinson são os representantes da soft sf (um modesto, outro viria a ser um autor de referência), ambos com histórias de sociedades pós-holocausto.

Hugo Nebula
Vencedor WILLIAM GIBSON, NEUROMANCER
Nomeados Robert Heinlein, Job: A Comedy of Justice
Larry Niven, The Integral Trees
Vernor Vinge, The Peace War

David Palmer, Emergence
Robert A. Heinlein, Job: A Comedy of Justice
Larry Niven, The Integral Trees
Lewis Shiner, Frontera
Jack Dann, The Man Who Melted

Kim Stanley Robinson, The Wild Shore

Quadro 4: Vencedor e nomeados para os prémios Hugo e Nebula em 1985

Quer do ponto de vista diacrónico quer olhando apenas para o ano de 1985, o triunfo de Neuromancer de William Gibson equivale ao reconhecimento, pelo menos para a categoria mais visível do ponto de vista do mercado, de um novíssimo subgénero29 que até aí tinha merecido muito pouca atenção e que, de alguma forma, pôde apresentar-se como síntese dialéctica entre as duas grandes áreas da SF — e que, por isso, parecia superar e unificar o que era característico de cada uma.

Apesar da importância de Gibson e das inovações do cyberpunk, evitemos contudo atribuir-lhes o estatuto de «milagres» no campo da SF — ou, caindo no extremo oposto, afirmar que a sua chegada se adivinhava há muito. Num pouco de cada afirmação reside a verdade, como concluiremos.

Por um lado, a ficção científica tornara-se quase «surda» a certas (não tão) novas tendências tecnológicas, especialmente no domínio da informática, mas não tanto que estas estivessem de todo ausentes da produção literária da década que antecedeu o cyberpunk. Como descrevemos acima, durante quase toda a história do género, robots e computadores foram retratados como auxiliares ou como potenciais inimigos da humanidade, mas sempre como algo à parte desta. Nada de estranho: também as ciências da computação durante longo tempo surgiram a público como arautos da Inteligência Artificial e da Robótica, mas a área até hoje mais economicamente proveitosa e com maiores alterações a nível social veio a ser a das interfaces homem-computador, isto é, a que propõe alguma forma de ligação entre homem e máquina (com todas as cambiantes possíveis, da cooperação à anunciada ou temida simbiose, passando pelo diálogo), cada um contribuindo com o que tem de mais vantajoso30.

Ora, a SF não se alheou por completo dessa outra forma de encarar a tecnologia, mas nunca (antes do cyberpunk, entenda-se) a ponto de deixar que se tornasse a perspectiva dominante. Todavia, à medida que se avançava na década de 70, esta visão ainda minoritária começava a ocorrer com cada vez maior frequência: até aí, o caso mais conhecido era muito provavelmente o conto de 1940 «Waldo», de Robert Heinlein, sobre a telepresença ou acção à distância tecnologicamente assistida, mas convém não esquecer o notável «Scanners Live in Vain» de Cordwainer Smith, sobre uma espécie de simbiose entre pilotos, artificialmente diminuídos nas suas capacidades físicas, e as suas naves espaciais; na década e meia que antecedeu o cyberpunk, temos, apenas como ilustrações, Babel-17, de Samuel R. Delany, «The Girl who was Plugged in» de James Tiptree Jr., recuperando a ideia da simbiose entre humanos e máquinas, e The Shockwave Rider de John Brunner, talvez a primeira novela onde surgem vírus informáticos.

O ambiente literário tornara-se portanto cada vez mais atento às ciências da computação, mas não na algo estafada área da Inteligência Artificial no sentido forte e sim nestes domínios de investigação então em ascendência31. Por outro lado, a pressão para que se inovasse puramente no interior do campo literário era também significativa. À hard sf, por mais que flirtasse há muito com as sensibilidades sociais características da soft sf, era necessário encontrar novos temas, ou pelo menos novas maneiras de abordá-los — como acabámos de ver, os autores que inspiraram o cyberpunk tinham mostrado um caminho que o género hesitava em seguir. A soft sf, por seu lado, deslizava cada vez mais para a fantasy (fenómeno que certos críticos anteciparam32 e que veio a alterar por completo, para gáudio de alguns e pesar de muitos, o panorama da ficção científica dos anos 80 em diante) e esperava-se que pelo menos surgissem alguns contrapesos a esta tendência — não sendo o único, o cyberpunk, dada a sua reaproximação à hard sf e a insistência em cenários do near future (e portanto mais especulativos do que extrapolativos33), depressa se revelou como tal; e finalmente, todo o campo da SF dava sinais de que necessitava de uma renovação que, sem deixar de ser exclusivamente literária, permitisse evitar o «circuito fechado» que é a sentença de morte de qualquer género artístico — o inicial ecletismo do cyberpunk, atento (se bem que cheio de cautelas) a outros géneros literários como o policial e a alguns autores do chamado mainstream, foi também um dos focos dessa renovação.

 

Surgido no momento certo e impulsionado pela inegável qualidade literária de alguns autores que se tornaram o seu emblema — e que talvez por isso mesmo não tardaram a aproximar-se da literatura mainstream –, o cyberpunk depressa atingiu a consagração. Os seus temas — a ligação à máquina, as realidades puramente virtuais construídas como representações de bases de dados, a omnipresença da informática –, se já eram pregnantes, ganharam uma importância acrescida à medida que o ambiente sociotécnico foi confirmando, com as devidas diferenças, algumas das suas «profecias». O que pode parecer uma ironia quando pensamos que William Gibson escreveu Neuromancer numa simples máquina de escrever e que demorou bastante tempo até se converter ao e-mail34. Ou talvez, no lugar da ironia, se esconda nesse quase trivial fait-divers um facto mais profundo: apesar da quase revolução que significou para o género, o cyberpunk foi desde o início, pelo menos para os nomes mais significativos, demasiado prudente, se não mesmo demasiado conservador logo que a consagração chegou.

E isto porque a força das imagens do cyberpunk é também a sua fraqueza: logo que se sai do near future, dum tipo muito específico de distopia e das personagens que esta quase exige, e das realidades «virtuais», sai-se também do cyberpunk. Tais limitações — ou melhor, delimitações bem precisas –, bem como a rápida aceitação por parte de uma comunidade de leitores estranha à fandom da ficção científica, algo quase sem precedentes no género, inspiraram uma vaga de imitadores, o chamado pós-cyberpunk. Como bem o diz Andrew Butler (2000, p. 16) a propósito de Mirrorshades, a célebre colectânea de apresentação do movimento, «most of what I call post-cyberpunk is closer to our idea of cyberpunk than some of the stories in the supposedly definitive anthology», e isto ao mesmo tempo que os seus «pais fundadores» partiam para outros terrenos literários. Diz ainda Butler (idem, p. 15) que «by the time the general public noticed cyberpunk, it was all over». Mas não para o campo das artes tecnológicas, onde continua a reinar.

 

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1991 Virtual Reality, ed. port. Realidade Virtual, Lisboa, Vega, 1997 (tradução de Jorge Martins Rosa).

Rose, Mark

1981 Alien Encounters: Anatomy of Science Fiction, Cambridge (MA), Harvard University Press.

Scholes, Robert

1975 Structural Fabulation: An Essay on Fiction of the Future, Notre Dame (IN), University of Notre Dame Press.

Stableford, Brian

1987 «The Evolution of Science Fiction as a Publishing Category», in The Sociology of Science Fiction, San Bernardino (CA), The Borgo Press, pp. 45-67.

Swanwick, Michael

1986 «A User’s Guide to the Postmoderns», Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine, republicado in James Gunn e Matthew Candelaria (orgs.), Speculations on Speculation: Theories of Science Fiction, Lanham (MD), The Scarecrow Press, 2005, pp. 313-330.

Warrick, Patricia

1977 «Images of the Man-Machine Intelligence Relationship in Science Fiction», in Thomas D. Clareson (org.), Many Futures, Many Worlds: Theme and Form in Science Fiction, Kent (OH), The Kent State University Press, pp. 182-223.

Wilson, Stephen

s/d «Intersections of Art, Technology, Science & Culture: Links», in Conceptual/Information Arts

 

Notas

1 Entenda-se «imitar» como sinónimo mais a jeito do conceito de mimesis. Feito o esclarecimento, pode este artigo prosseguir sem que precise de confrontar-se com questões ontológicas que aqui estariam deslocadas do seu lugar natural. Todavia, se estas forem precisas, eis o que tem a dizer-nos Robert Scholes: «Once we knew that fiction was about life and criticism was about fiction — and everything was simple. Now we know that fiction is about other fiction, is criticism in fact, or metafiction. And we know that criticism is about the impossibility of anything being about life, really, or even about fiction, or, finally, about anything.» (Scholes, 1975, p. 1)

2 Doravante também identificada como SF, abreviatura de «science fiction» ou de «speculative fiction».

3 Saber qual a extensão de uma lista destes títulos consagrados depende de nela se incluírem ou não obras que não foram escritas como «ficção científica» (isto é, que não são «de género») mas que de uma forma ou doutra entraram no seu cânone. Consoante a perspectiva, Brave New World e 1984 serão incluídos segundo uma definição abrangente ou postos de parte se o critério for minimalista. E neste último caso o conjunto de obras que entraram no «cânone» da Literatura tout court é com efeito ainda muito reduzido, e quando o conseguem as suas origens «plebeias» são descuradas. Quantos se lembram de que Fahrenheit 451 começou como um conto, «The Fireman», publicado na revista Galaxy Science Fiction de Fevereiro de 1951? Cf. também, apenas como ilustração, o relato de Robert Scholes sobre Flowers for Algernon, de Daniel Keyes, em Structural Fabulation (Scholes, 1975, pp. 54-56).

4 Um exemplo recente é Eternal Sunshine of the Spotless Mind, de Michel Gondry (de 2004), que aborda um tema muito caro a certa ficção científica — a memória e a possibilidade tecnológica de apagá-la. Este surge no entanto camuflado num drama romântico cuja intriga parece ocorrer no presente, ou pelo menos num futuro muito próximo.

5 Uma das melhores fontes de informação para quem procura obras de arte tecnológica disponíveis na web, e especialmente para quem o pretende fazer com o auxílio de alguma forma de classificação, é o site da responsabilidade de Stephen Wilson, docente na San Francisco State University. Se recorrermos à categorização aí ensaiada (a URL em causa é http://userwww.sfsu.edu/~infoarts/links/wilson.artlinks2.html), verficamos que são muito poucas as categorias em que não é possível estabelecer pontos de contacto com temas e abordagens caras à ficção científica. E destas afinidades, o cyberpunk surge numa clara posição dominante. Para demonstrá-lo, deixamos aqui essa extensa lista, prescindindo apenas das suas subcategorias e acentuando que o seu valor é essencialmente heurístico: : Conceptual Kinetics & Robotics; Kinetic Instruments, Sound Installation, Industrial; Virtual Reality; Motion, Gesture, Touch, Gaze, Manipulation, Activated Objects, Haptics; Artificial Intelligence & Agents; Information Systems, Surveillance, Science as Information System, Shadow Corporations; Speech Synthesis, Voice Recognition, and 3-D Sound; Computer Media; Artist Games; Telecommunications; Web Art; Biology: Microbiology; Biology: Animals & Plants; Ecology; Body & Medicine; Algorithms, Art & Mathematics, Genetic Art, Artificial Life; Atomic Level Physics, Nanotechnology; Natural Phenomena – Non-linear Dynamic Systems, Water, Weather, Solar Energy, Geology, Mechanical Motion; Rapid Prototyping Sculpture; Space Art; GPS (Global Positioning System); Holography.

6 Cinco exemplos, todos eles encontrados no site indicado na nota anterior, ora com referências a temas, ora a títulos ou autores da SF: The Parallel Dimension, de Teresa Wennberg (descrição em http://www.nada.kth.se/~teresa/PDVR.html); Cybernetic Poet, de Ray Kurzweil, também conhecido pelas suas teorias sobre Inteligência Artificial (download em http://www.kurzweilcyberart.com/poetry/rkcp_freedownload_request.php); The Difference Engine #3, de Lynn Hershman (em http://www.lynnhershman.com/difference-engine-3/); DNA Music, de John Dunn e Mary Anne Clarke (http://algoart.com/dnamusic/) e Electric Sheep, de Scott Draves (http://electricsheep.org/).

7 A oposição entre extrapolação e especulação é uma das mais incontornáveis no universo dos estudos sobre a ficção científica. No contexto deste artigo, bastará referir que a ficção extrapolativa procura, com o rigor possível, imaginar como será um futuro próximo se se seguirem as tendências no estado presente da tecnologia, enquanto a ficção especulativa é muito mais livre e menos rigorosa, retratando por isso, regra geral, sociedades de um futuro longínquo. Da mesma forma, e uma vez que um pouco à frente serão referidos subgéneros como a hard sf e a soft sf (e ainda a fantasy), a extrapolação tende a ocorrer muito mais nas obras de hard sf, ao mesmo tempo que a especulação se aproxima da fantasy.

8 De novo graças a algum contributo dos mass media ou a fenómenos de culto um pouco mais difíceis de explicar. A obra de Philip K. Dick, apenas como ilustração, situar-se-á a meio caminho entre estas duas possibilidades: Blade Runner divulgou massivamente o autor e, na ressaca deste filme, permaneceu um culto extra-fandom em torno da sua obra.

9 Exigem-se neste ponto dois tipos de esclarecimento. O primeiro deles é terminológico: segundo a associação Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA), que atribui anualmente os prémios Nebula, define-se uma short story como sendo uma obra de ficção com menos de 7500 palavras, uma novelette quando tem no mínimo 7500 palavras mas menos de 17500, uma novella se atinge as 17500 mas fica abaixo das 40000, e novel quando iguala ou ultrapassa este número de palavras. Com pequenas variações, é esta a convenção habitualmente partilhada por autores, editores e leitores do género. O segundo esclarecimento diz respeito à precisão da nossa afirmação: o domínio inicial dos periódicos não implica necessariamente uma desvalorização das novels, dado que muitas das vezes estas começam por ser publicadas como serials que se estendem por dois ou três números de uma revista. São também a extensão privilegiada quando se passa do formato da revista ao livro: com pequenas adaptações podem adquirir uma unidade que havia sido posta em causa pela serialização e constituem um risco mínimo para os editores, que preferem apostar em títulos e autores que já passaram pelo crivo das publicações periódicas. Concluindo: as novels existem e não são de todo secundarizadas; mas até ao momento em que as primeiras edições começaram a surgir no mercado do livro e não no dos periódicos, uma grande extensão equivalia a alguma desvantagem competitiva.

10 Ainda que muitos autores tenham continuado a dividir a sua atenção pelas diferentes extensões de obras, um bom exemplo do que afirmamos é o caso de Philip K. Dick. Até ao início dos anos 60 quase só escreve — se exceptuarmos o que produziu fora do género da SF — obras de tamanho curto a médio (até mesmo as novels pouco sobem acima do limite mínimo das 40000 palavras). Daí em diante, esta produção decai a pique, praticamente só escrevendo novels.

11 Para a génese do movimento, particularmente nos Estados Unidos, um artigo-testemunho incontornável é «What do You Mean: Science? Fiction?», de Judith Merril (1966); para uma visão suficientemente distanciada no tempo, ver o capítulo «New Wave: The Great War of the 1960s» em Age of Wonders, de David Hartwell (1984, pp. 141-156).

12 E por isso muitas vezes identificada pelo acrónimo ASF, aplicável a qualquer dos nomes.

13 Cf., de novo, Merrill, 1966, e ainda alguns artigos in Malzberg, 1982.

14 Trata-se de trabalhos cuja metodologia é essencialmente a da análise estatística: a partir de um questionário de preferências feito a editores e subscritores de fanzines de SF, foi possível estabelecer um conjunto de correlações entre 27 autores do género. Do questionário resulta, de modo bastante claro, que as preferências de leitura tendem a ser fortemente polarizadas em torno de subgéneros. Uma outra conclusão bastante curiosa, que não exploraremos aqui, tem a ver com a relação entre o posicionamento político dos leitores e os seus subgéneros favoritos: assim, os leitores que preferem a hard sf à direita, os adeptos da New Wave à esquerda, e os da fantasy oscilando nas proximidades do centro.

15 Seria também possível apurar o mapeamento ao nível dos títulos individuais, mas para simplificar não iremos — como não o foram Bainbridge e Dalziel — além do dos autores e sua obra como um todo.

16 Muitos deles são facilmente identificáveis no Quadro 1: o próprio Campbell, Robert Heinlein, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov e Frank Herbert, embora naturalmente a lista não se fique por aqui.

17 Bainbridge começou a sua originalíssima investigação nesta década, e apesar de o livro Dimensions of Science Fiction surgir apenas em 1986, procura aí traçar um quadro essencialmente sincrónico que toma a ficção científica como um todo; as alterações diacrónicas, ainda que ocasionalmente mencionadas por Bainbridge, têm um carácter secundário face a este mapa que se quer resistente a estas.

18 Cf. Swanwick, 1986.

19 Cf. também o artigo, com um aroma derridiano, do autor-crítico Samuel R. Delany «The Gestation of Genres» (Delany, 1987).

20 Foi essa uma das suas «doenças infantis»: quando Hugo Gernsback clamava no final dos anos 20 «Extravagant fiction today, cold fact tomorrow», o rigor científico e mesmo a componente pedagógica (para não dizer ideológica) eram obstáculos a um género que se queria literário; uma década depois, John W. Campbell ainda defendia que a cientificidade devia vir primeiro, mas sabia abdicar dela em favor de uma boa história. Relativamente à posição de Hugo Gernsback, cf. o histórico editorial «How to Write “Science” Stories» (Gernsback, 1930).

21 A oposição entre «modo clássico» e «modo barroco» — mas não estes nomes — pode também ser encontrada em Alien Encounters: Anatomy of Science Fiction, de Mark Rose (1981).

22 Um exemplo é «With Folded Hands», conto de Jack Williamson do final dos anos 40 (bem como The Humanoids, que daí resultou), cujos robots têm como lema um princípio muito asimoviano: «To serve and obey, and guard men from harm», mas levado ao paroxismo. São aliás inúmeros os ensaios, cada um com as suas ilustrações favoritas, que abordam a questão dos robots na ficção científica. De entre estes, podemos destacar os de Patrícia Warrick (1977), bastante extenso e procurando não descurar a perspectiva histórica, e de Stanislaw Lem (1969), mais ensaístico mas nem por isso menos «estrutural».

23 Ainda antes de Philip K. Dick o fazer recorrendo aos andróides já Čapek (em Valka,s Mloky [A Guerra das Salamandras]), Wells (The Island of Doctor Moreau) e — por que não — Jonathan Swift (Gulliver’s Travels) o haviam feito no interior de um paradigma biológico, onde espécies do reino animal desempenham uma função equivalente à que depois será reformulada num paradigma tecnológico.

24 Coesão «conseguida» à custa do seu fechamento relativamente ao público leitor mais comum — por alguma razão é na ficção científica que a literatura realista recebe o nome de «mainstream» –, que leva a que seja uma espécie de ghetto literário cuja entrada é uma verdadeira iniciação. A isso não foi alheio o modo como o sistema de produção estava organizado no sector das publicações periódicas nos Estados Unidos. Cf. Stableford (1987) e, na visão de quem estava no interior desse sistema, Boucher (1953).

25 Há alguns anos, seria preciso acrescentar a volumosa correspondência (de fans e escritores) dirigida às revistas do género. Hoje em dia, e apesar de este ser um dos poucos géneros em que continuam a publicar-se periódicos que lhe são exclusivamente dedicados, o peso das «cartas dos leitores» é menor.

26 Não estamos imunes a alguma arbitrariedade, ou mesmo ignorância num ou noutro caso pontual: Frederik Pohl (não representado nos gráficos) estará na fronteira entre hard e soft, por vezes claramente na área soft, embora as obras que foram premiadas nos anos 70 demonstrem uma aproximação aos temas hard; a informação que obtivemos de No Enemy but Time, de Michael Bishop (recorrendo à Encyclopedia of Science Fiction) leva-nos a classificá-lo como soft, mas também numa situação de fronteira. Joe Haldeman, apesar de físico e astrónomo e de recorrer a um tema típico da hard sf — a viagem no tempo — em The Forever War, fá-lo, segundo o nosso critério pessoal, com uma sensibilidade característica da soft sf, a que não é alheio o facto de essa obra ser uma explícita crítica à guerra do Vietname.

27 Seria interessante, ainda que tal ultrapasse os objectivos deste artigo, tentar averiguar os poucos casos (ao menos neste período) em que não houve unanimidade entre Hugo e Nebula. Ainda assim, é de assinalar que num dos casos (1971) os dois contemplados ocupam coordenadas não muito distantes, apesar de Silverberg, talvez devido à sua enorme produtividade, ocupar uma posição muito mais central no mapa triangular; e que em três dos quatro casos restantes, os Hugo foram para mulheres, o que leva a acreditar que, a haver conservadorismo, este está do lado dos escritores e não dos leitores.

28 Além do Hugo e do Nebula, ganhou ainda o Philip K. Dick Award, destinado às novelas cuja primeira edição é em paperback, atribuído pela primeira vez em 1983 a obras de 1982.

29 Ainda que longe de ser estreante: no mesmo ano devemos acrescentar a novella «Press Enter [ ]», de John Varley, que ganhou também o Hugo e o Nebula no mesmo ano nessa categoria, e «Sunken Gardens», de Bruce Sterling, nomeado para o Nebula para melhor short story; em anos anteriores, provando que o fenómeno não foi súbito, temos alguns nomeados: «Swarm», de Bruce Sterling (nomeado em 1984 para o Hugo para melhor novella escrita em 1983), «Cicada Queen», também de Bruce Sterling (nomeado para o Nebula para melhor novelette no mesmo período), «Burning Chrome», de William Gibson (nomeado em 1983 para o Nebula para melhor novelette escrita em 1982), e finalmente «Johnny Mnemonic», de William Gibson (nomeado em 1982 para o Nebula para melhor short story escrita em 1981).

30 No que diz respeito ao sucesso económico, basta articular as palavras «Microsoft», «Windows» ou mesmo «MacIntosh», mas outras são igualmente relevantes se se quiser reflectir sobre as alterações sociais provocadas pela democratização dos computadores: o rato, os pull-down menus, as fontes True-Type, entre outras criações da informática, mudaram por completo a forma de trabalhar e mesmo de conceber o mundo. Para o falhanço (excepto em casos muito específicos) da Inteligência Artificial, cf. os clássicos textos de Hubert e de Stuart Dreyfus, por exemplo What Computers Still Can’t Do (Dreyfus, 1972); para o sucesso da «augmentation», cf. a obra de divulgação Virtual Reality, de Howard Rheingold (1991).

31 No ensaio de 1969 a que já aludimos, Stanislaw Lem assinalava que a ideia de uma simbiose homem-máquina era ainda uma lacuna na ficção científica (cf. Lem, 1969, p. 322). Como mais tarde notou Patricia Warrick (1977), a lacuna começou por ser preenchida por narrativas num modo predominantemente especulativo e no far future, como ocorre nos exemplos acima, no corpo do texto; podemos agora dizer que o cyberpunk o fez para o modo extrapolativo e para o near future.

32 Um importante conjunto de ensaios onde ocasionalmente é abordada a questão da proximidade entre fantasy e SF é SF in Dimension, de Alexei e Cory Panshin (1980). Ainda que se encontrem entre os maiores defensores da SF mais clássica, particularmente na sua corrente campbelliana, não hesitam reconhecer os pontos de contacto com a fantasy. Estes são estruturais e inevitáveis, como se lê em «The Short History of Science Fiction» (pp. 19-29, escrito em Abril de 1971):«Even a cursory glance shows that the term “science fiction” no longer can pretend to fit the actualities of the genre. […] We are fantasy-writing frauds. We should acknowledge the fact.» (p, 29); e, como é quase profetizado no curto «The Special Nature of Fantasy» (pp. 79-80, escrito em Junho de 1974), serão ainda mais estreitos como resultado de uma tendência evolutiva: «The universe of fantasy stories» — ao contrário tanto do universo mimético do mainstream quanto do da ficção científica — «is a responsive moral universe. In a fantasy universe, anything is possible. Any miracle may happen. […] Nonetheless, the trend of development of science fiction is toward the miraculous and the moral. […] As this happens, science fiction and fantasy will tend to fuse. […] sf will increasingly take on the character of fantasy.» (p. 80)

33 A existência de um subgénero spin-off, o steampunk, não é mais do que a prova acabada desta tendência, que diremos cautelosa: ao retomar a ideia de realidade alternativa, novelas como The Difference Engine (da autoria de William Gibson e Bruce Sterling, e publicada originalmente em 1990) não fazem mais do que antecipar para o que poderia ter sido o nosso presente aquilo que o cyberpunk no sentido estrito posiciona alguns anos ou no máximo décadas no futuro.

34 Cf. Butler, 2000, p. 19: «Despite the high-tech world he depicts, Gibson had had very little personal contact with computers; Neuromancer was written on a manual typewriter prior to the home computer revolution of the 1980s. If only because he is deluged with faxes everyday, he has refused for many years to have an e-mail address, and was reluctant about trying out the worldwide web; perhaps his imagination might be compromised by being confronted by the reality of what he had imagined.»

 

Texto: 3/Jun/05

© Jorge Martins Rosa

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