Lugares Incomuns

Pretende-se neste artigo averiguar, tanto do ponto de vista interno à narrativa quanto daquilo que daí pode ser extrapolado para o universo do leitor, se na obra de Philip K. Dick é possível discernir alguma lógica que regule a escolha de diferentes localizações espaciais e os percursos das personagens por estes espaços. Concentrando-nos especialmente em The Unteleported Man/Lies, Inc., procura-se demonstrar que a presença de «espaços alternativos» é condição essencial para o desenrolar da narrativa, havendo no entanto uma permanente indefinição — intencionalmente procurada por Dick — quanto ao estatuto e aos limites destes mesmos espaços.

Publicado na Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 34/35 («Espaços»), Lisboa, Relógio d’Água, 2005.

A Lógica dos Espaços Alternativos na Ficção Científica de Philip K. Dick

 

Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 34/35 («Espaços»), Lisboa, Relógio d’Água, 2005, pp. 183-194

Texto realizado no âmbito de uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ao abrigo do programa POSI. Um especial agradecimento a Maria Augusta Babo pelos seus esclarecimentos no rigoroso terreno da semiótica textual.

 

Autor de mais de 40 novelas e cerca de 130 contos, na sua maioria de ficção científica, Philip K. Dick tem sido, particularmente nas duas décadas que decorreram depois da sua morte, dos escritores mais aclamados neste género literário. Justificações para tal têm sido diversas, desembocando contudo, na sua maioria, na descrição dada pelo próprio sobre as questões centrais presentes na sua obra — a natureza da realidade e a essência do ser humano1. Questões filosóficas, se não mesmo metafísicas, o que, tendo em conta o predomínio narrativo da sua produção literária2, obrigam ao uso de estratégias próprias a esse modo de expressão. Se a isto acrescentarmos a filiação a um determinado género, as dificuldades com que o leitor se depara ao procurar extrair um sentido que responda a tais questões tornam-se acrescidas3.

De entre os múltiplos elementos próprios à ficção que nos permitem avançar alguns passos a caminho da resposta à pergunta «O que é para K. Dick a realidade e o ser humano?», procuraremos aqui concentrar-nos na forma como modaliza o espaço que a intriga apresenta. Mais concretamente, pretende-se saber se alguma lógica preside aos percursos que levam as personagens a ocupar os diversos locais descritos e qual a função destes, tanto do ponto de vista interno à narrativa quanto daquilo que daí pode ser extrapolado para um universo exterior à narração, que é o do leitor.

O objectivo é arriscado, em particular se se assumir uma perspectiva global, que não descarte à partida nenhuma das novelas que Dick escreveu no lapso de cerca de 30 anos que começou na década de 50, procurando também incluir as tão descuradas short stories. Um primeiro auxílio vem-nos de José Manuel Mota, autor de uma tese de doutoramento em Literatura Inglesa sobre Philip K. Dick4, segundo quem (este é aliás um argumento fundamental da dissertação) a sua obra, ainda que tematicamente pertencendo ao género da ficção científica, possui uma estrutura que se enquadra (pelo tratamento narrativo, pelas soluções muitas vezes ao arrepio de qualquer cientificidade hard) muito mais na categoria da chamada fantasy. Admitindo-o — e acreditamos que essa dissertação o prova de modo muito inequívoco –, mais facilmente se aceitará também que comecemos por recorrer a um modelo clássico de análise, a semiótica textual da linhagem que vai de Propp a Greimas, que teve como primeiro objecto o conto popular maravilhoso, género de características afins ao fantástico e à fantasy5.

Há contudo obstáculos adicionais a superar. Tanto Propp quanto Greimas assumem uma Ur-Struktur que consiste em partir de um estado — chamemos-lhe «momento-zero» — no qual se verifica uma falha ou falta, consistindo a narrativa (daí a expressão récit de quête) no conjunto de transformações que um protagonista deve executar ou sofrer de modo a resolver a falha inicial, atingindo um outro estado que tanto pode ser o de regresso a uma normalidade temporalmente anterior à intriga quanto — caso mais comum — o da instauração de uma nova normalidade que sintetiza, muito hegelianamente, os momentos inicial e intermédio. O ponto de vista estritamente espacial acompanha habitualmente tais transformações: ao «momento-zero» corresponde um «espaço-zero» («tópico», na classificação de Greimas), a aquisição de competências por parte do protagonista tem lugar num espaço alternativo ou «paratópico» (muitas vezes aquele onde a dimensão fantástica ou maravilhosa predomina) e, concretizado o objectivo através da performance, acede-se a um espaço «utópico», que pode ou não coincidir «fisicamente» com o tópico.

Ora, em Philip K. Dick as coisas não são assim tão simples — não o são, aliás, em qualquer narrativa que se reclame de uma cultura pós-oral e muito menos o são neste autor. Se nas obras de juventude (cf., p. ex., Cosmic Puppets, ou mesmo Solar Lottery) é relativamente fácil apontar um «espaço-zero», à medida que avançamos na cronologia das obras o seu estatuto ou tão-só a sua mera existência vão sendo cada vez mais problemáticos. Ubik, que nos apresenta um estranho domínio que ao longo da leitura descobrimos ser uma espécie de limbo entre a vida e a morte, para no final nos ser retirado o tapete quanto à crença do leitor relativamente àquele que aparentava ser o mundo exterior — o dos vivos –, é o exemplo mais claro desta indecidibilidade. Não é por isso de estranhar que seja a propósito dessa novela que José Manuel Mota faz uma afirmação em tudo semelhante: se a determinado ponto (1995, p. 250) se interroga se não estará Dick a recorrer a um «efeito fácil retirado dos livros de receitas da fantasia mais convencional», admite um pouco mais à frente que «Ubik é tão subversivo que até as leis básicas do contrato narrativo subverte» (idem, p. 255).

Ainda assim, hipótese que procuraremos testar e da qual depende o bom termo da tarefa aqui proposta, a indecidibilidade quanto a qual dos diferentes espaços deve ser tomado como «tópico» não impede — pelo contrário, talvez exija — a inversão da perspectiva: é (quase) sempre possível apontar um espaço alternativo («paratópico» seria aqui um termo demasiado específico) relativamente ao qual os outros se posicionam, com um grau de probabilidade variável de novela para novela, como possíveis espaços tópicos. Ou seja, numa linguagem mais coloquial, nem protagonista nem leitor sabem quando (ou sequer se) qualquer dos espaços retratados é o real, mas reconhecem (ou descobrem à medida que a narrativa avança) que há pelo menos um que não o é6. É justamente sobre o conjunto desses espaços — aqueles a que a lógica da leitura obriga a subtrair o atributo de realidade — que nos concentraremos.

 

Flutuações

Se o reconhecimento de pelo menos um espaço como alternativo é algo possível, nem que seja com um objectivo meramente heurístico, mais difícil será sustentar, para toda a obra de Dick, o paradigma da estrutura narrativa que surgiu como proposta de análise ao récit de quête, que consiste, como se sabe (e como foi já mencionado acima) na sequência «aquisição de competências» –> performance, a não ser que o tomemos apenas como contraponto ideal que as narrativas concretas aspiram a subverter. Cosmic Puppets, a mais fantasy — e primeira — das novelas ainda se encaixa neste modelo: Ted Barton, o protagonista, regressa à sua terra natal mas ninguém recorda a sua existência, não constando sequer dos registos de nascimento. Para agravar o problema, torna-se-lhe impossível sair do perímetro da aldeia. Progressivamente descobre — aquisição de competências — que a aldeia foi tomada pela divindade zoroastriana Ahriman, que aí aprisionou Ormazd7, distorcendo toda a realidade. Barton descobre ainda, ao longo da sua estadia forçada, um modo de restituir os antigos edifícios à forma original — de novo aquisição de competências –, esforço que não só traz de volta a povoação original — performance — como além disso desperta Ormazd do seu estado de amnésia, reabilitando-o para o seu milenar combate com o maligno Ahriman.

Em narrativas posteriores, tal esquematismo (que aí ainda vai ao ponto de facilmente permitir encontrar adjuvantes, oponentes, etc.) sai dos gonzos, para parafrasear o título original de uma das suas obras8. Nalguns casos a performance é mal sucedida (ou, mais precisamente, ambígua quanto ao seu sucesso, como em Ubik); noutros, pode estar presente a lógica «aquisição de competências» –> performance, mas esta não se articula, como nos récits de quête tradicionais, com a transição para um espaço alternativo e regresso ao «espaço-zero»9. Exemplos: o retorno do espaço alternativo conduz à anulação da performance, isto é, a um insucesso ainda mais profundo (Martian Time-Slip); o espaço alternativo é finalidade e não mero objectivo intermédio de aquisição de competências (Solar Lottery, mesmo que enquanto finalidade esta venha também a revelar-se um logro); é um beco sem saída ou o aprisionamento numa realidade idiossincrática (The Three Stigmata of Palmer Eldritch); é um vislumbre epifânico atingido de forma involuntária pelo protagonista (The Man in the High Castle); é um local reciprocamente inatingível (por meios físicos) consoante a perspectiva é a das personagens que vivem numa Terra pós-holocausto nuclear ou a de um astronauta cativo numa órbita ad aeternum em torno do planeta (Dr. Bloodmoney). Cada novela é singular, aparentando escapar a qualquer generalização.

Por entre tantas nuances, será útil que nos concentremos num caso que de alguma forma se revele como exemplar, ou que ao menos permita uma bitola a partir da qual se possa aferir o conjunto da obra. Encontramo-lo naquela que é talvez a mais conturbada das novelas de Dick, a única que não logrou atingir o estado de uma versão definitiva: The Unteleported Man/Lies, Inc. As peripécias em torno das sucessivas redacções desta novela tornam forçoso que as esclareçamos10: no início de 1964, é proposto a Philip K. Dick que escreva uma noveleta (conto longo, com cerca de 20.000 palavras de extensão) para a revista Fantastic, a partir de uma ilustração que será a capa. O conto, «The Unteleported Man», é terminado no final de Agosto do mesmo ano e publicado na edição de Dezembro. Ainda nesse ano, o editor Donald Wollheim propõe a Dick que expanda a noveleta — prática então comum no género — para cerca de 50.000 palavras, de forma a ser publicada como livro. O material de expansão — simplesmente acrescentado à versão original, que sofre apenas o corte dos parágrafos finais — é entregue em Maio de 1965, sendo contudo recusado por Wollheim (por razões que entretanto se tornarão claras). Em vez de editá-lo enquanto novela autónoma, Wollheim decide simplesmente republicar o conto na sua forma inicial na colecção «Ace Double», em dos-à-dos11, o que acontece em Novembro de 1966.

O conto/novela subsistiria nestas duas versões, a (re)publicada e a inédita, até que, em 1979, uma outra editora — Berkley — adquire os direitos de algumas obras de Dick, e lhe propõe que The Unteleported Man (a novela) seja finalmente publicada, mas não sem uma profunda revisão. Dick não só acede a esta condição como se empenha em fazer alterações substanciais, algumas inspiradas pela experiência mística de 1974 que influenciou todas as suas obras tardias. A revisão arrasta-se, acompanhando a alternância entre períodos de fértil inspiração e a dispersão por outros projectos, ainda que as alterações fundamentais na estrutura tenham depressa tomado uma forma definitiva. A agravar, três passagens do manuscrito original (totalizando quatro páginas) haviam sido perdidas, e apenas num dos casos Dick soluciona o problema. Ao que tudo indica, inúmeras passagens necessitariam de alterações mais ou menos substanciais para assegurar uma nova lógica de continuidade, mas Dick, que entretanto completara mais duas novelas e iniciara uma outra12, falece antes que possa dar a revisão por terminada.

A segunda das versões iniciais estava entretanto mutilada (devido às quatro páginas em falta), mas a editora americana Berkley, talvez motivada pela então recente morte de Philip K. Dick, publica-a em 1983 conservando os três saltos na narrativa e justificando a opção numa nota de abertura. Um ano depois, a editora britânica Gollancz decide editar a versão parcialmente revista por Dick, agora intitulada Lies, Inc. Permanecem duas das falhas na sequência narrativa, mas a opção editorial foi a de encomendar ao escritor John Sladek a tarefa de um gap-filling. No ano seguinte, Paul Williams, jornalista e executor do espólio literário de K. Dick, descobre as páginas em falta, dispersas no manuscrito de Do Androids Dream of Electric Sheep?, e publica-as numa das edições da sua Philip K. Dick Society Newsletter. Só em 2004 surgiria uma nova edição de Lies, Inc. com o texto reconstituído, não se prevendo, por ora, que o mesmo venha a acontecer com The Unteleported Man13.

O que contam então as diferentes versões? Como afirma Andrew Butler num livrinho de introdução à obra de Dick14, a intriga faz lembrar as de James Bond, e — afirmamos agora nós — em muito deve ao subgénero da space opera, nada típico das novelas de K. Dick (se ignorarmos as primeiríssimas), ainda que bastante mais comum nos contos. Ora, é como conto (encomendado, convém não esquecer) que nasce, o que continuará a manifestar-se nas versões de longo fôlego: Rachmael ben Applebaum, herdeiro de uma empresa de transportes interestelares, encontra-se em situação de total falência desde que surgiu o sistema infinitamente mais rápido de teletransporte, monopólio da empresa Trails of Hoffman. Os dezoito anos que levaria a viagem para a colónia conhecida como Whale’s Mouth — note-se a evidente inspiração em Moby Dick — podem ser transpostos em apenas quinze minutos. A contrapartida é a impossibilidade, supostamente justificada por uma teoria cosmológica, de regressar pelo mesmo meio. Tanto intrigado por esta teoria bizarra quanto desejoso de resolver a sua situação financeira, Applebaum pede ajuda à corporação Lies, Inc. para que possa averiguar o que se passa em Whale’s Mouth. As peripécias ao estilo bondiano sucedem-se: é necessário resgatar a única nave que lhe resta e obter os gadgets que lhe permitirão entrar em animação suspensa durante os dezoito anos da viagem. As suas acções são no entanto pautadas pelo insucesso e Applebaum resigna-se à viagem «acordado», sendo no último momento salvo por um deus ex machina: afinal é possível o teletransporte nos dois sentidos, como descobrem os responsáveis das Nações Unidas, alertados que haviam sido pelas acções de Applebaum. A história termina com Applebaum e outros voluntários a teletransportarem-se para resgatar o campo de concentração em que a colónia se transformara.

A expansão para a versão longa de The Unteleported Man tem início aqui, onde o conto terminava. E onde antes tínhamos James Bond passamos a ter «James Bond on acid» (Butler, 2000, p. 51): ao chegar a Whale’s Mouth, Rachmael ben Applebaum é interceptado por um soldado inimigo, que o atinge com um dardo embebido em LSD. Uma parte não menosprezável (apesar de não ultrapassar as 10 páginas) do texto acrescentado consiste na descrição das alucinações de Applebaum — eis o principal motivo da recusa do editor –, que prossegue com uma situação quase equivalente a um internamento psiquiátrico. Quando acorda da trip de ácido, Rachmael descobre-se acompanhado de onze outros colonos que o põem ao corrente: uma percentagem dos teletransportados — os weevils — sofre de um síndroma traumático que faz com que ocasionalmente alucinem uma realidade alternativa. Não qualquer realidade alternativa, mas sim uma de entre um conjunto limitado de «paramundos».

Encontramo-nos já, como é previsível, naquilo que intitulámos como «espaço alternativo». Há contudo um problema de fronteira: quando começa e quando termina a alucinação de Rachmael? A realidade alternativa a que os outros colonos se referem — no seu caso, a visão de um cefalópode aquático ciclópico — surge na fase final da alucinação de LSD. Como poderia o soldado saber, ao utilizar o dardo, que Rachmael iria experienciar uma dessas realidades alternativas? Aconteceria o mesmo se o dardo não tivesse sido utilizado ou este serve uma função equivalente à de um «teste de tuberculina», sendo administrado a todos os novos colonos? Ou, hipóteses mais radicais, será que Rachmael ainda não saiu da sua alucinação ou que até mesmo o teletransporte foi uma ilusão15? Como explicar então que os outros weevils lhe descrevam «paramundos» dos quais ele apenas tem esse conhecimento indirecto? E que dizer de uma alucinação posterior, que nem resulta de nenhum dardo nem corresponde a nenhuma das que os seus colegas de cativeiro haviam descrito?

Afirmámo-lo acima, no início do artigo: em Philip K. Dick, não é tarefa simples destrinçar com clareza o «espaço-zero» do(s) espaço(s) alternativos. Confrontar The Unteleported Man com Lies, Inc., a versão posterior, deixa o leitor ainda mais perplexo. O principal motivo consiste na alteração da sequência narrativa. Sem que se trate de um recurso a prolepses ou analepses, o material de expansão deixa de ser a mera continuação do conto, sendo encaixado a cerca de três quartos do original. Desaparece também o final da segunda versão (onde se encontravam duas das páginas perdidas) e regressa o final do conto — tal como o capítulo onde estava originalmente inserido e mais capítulo e meio, passa a figurar depois do material de expansão. Para assegurar que todo este material «cola», K. Dick altera ainda uma passagem (já presente no conto) em que Matson Glazer-Holiday, patrono de Rachmael e director da Lies, Inc., era teletransportado para Whale’s Mouth: em Lies, Inc. é agora Rachmael quem se teletransporta. O «homem não teletransportado» passa assim a usar este meio de locomoção duas vezes na mesma narrativa (percebe-se a necessidade de alterar o título), o que pode apesar de tudo ser justificado, mas há pelo menos um evento que perde totalmente o sentido original. Na versão longa, Matson é morto pouco depois da chegada a Whale’s Mouth, reaparecendo no entanto a Applebaum (ainda que transformado num cefalópode de múltiplos olhos) na última das suas alucinações; em Lies, Inc. o cefalópode aparece igualmente a Applebaum afirmando ser Matson, mas este não se havia ainda teletransportado (e muito menos sido assassinado, o que só acontecerá a escassas páginas do final). Ainda mais flagrante, a presença de Matson em Whale’s Mouth não é questionada por Applebaum, que se teletransportara em vez dele. Todo o diálogo com o cefalópode16, que já na versão primeira de The Unteleported Man merecia a suspeita de se tratar de uma alucinação, torna-se agora ainda mais desconcertante e onírico, não fosse o facto de ter consequências «factuais» para o desenlace da narrativa. Revisão pouco cuidada ou acto deliberado de K. Dick, quem poderá dizê-lo?

 

(In)constâncias

Tentemos então essa tarefa aparentemente impossível de ajuizar acerca da intencionalidade de Philip K. Dick. É certo que Lies, Inc. é, na versão «definitiva» recentemente publicada, ainda uma obra incompleta, se se quiser falhada. Dick não lhe terá dado de forma continuada a atenção necessária: ao que se pode apurar pela sua correspondência17, reescreveu muito rapidamente o capítulo inicial, redigiu alguns inserts e também depressa alterou a localização do material de expansão, resolvendo a traços largos as incoerências narrativas que tal poderia acarretar. Quanto aos ajustes mais finos, tudo indica que Dick os foi descurando: a escrita de material novo monopolizou a pouco e pouco a sua concentração. Tal não impede que se pressuponha que, no essencial, Lies, Inc. vai ao encontro das alterações desejadas, particularmente na sequência acima mencionada do diálogo com Matson-cefalópode: uma solução que de imediato resgataria a sua consistência narrativa é a de tomar esse diálogo como uma alucinação de Rachmael ben Applebaum. Pelos menos três outros textos de K. Dick, de décadas diferentes, autorizam esta extrapolação, mesmo que não a assegurem. O mais recuado é o conto «The World she Wanted», redigido em 1952, que descreve a estranha relação de um casal em que a mulher insiste que toda a realidade, incluindo o seu companheiro, é produto da sua imaginação, estando ele portanto sujeito à sua vontade; no final, o twist narrativo revela-nos que afinal ela era o produto da imaginação dele. Ubik, uma das novelas mais conhecidas, datada de 1966, usa uma técnica semelhante: todos os esforços de Joe Chip e da sua equipa para resgatarem o seu patrão, Glen Runciter, da morte definitiva colocando-o no estado de semi-vida se revelam infrutíferos pela simples razão de que é Runciter e não Joe Chip quem permanece vivo (apesar de no final a dúvida ser reposta). Já nos anos 70, Flow my Tears, the Policeman Said regressa ao tema da ilusão partilhada, contando a história de um apresentador de televisão, Jason Taverner, que perde a sua identidade; estranhamente, toda a realidade fora alterada por uma droga tomada por alguém que não ele.

Pode daqui depreender-se que, como o próprio Philip K. Dick afirmava, um número bastante considerável de novelas e contos procura questionar as nossas habituais assunções sobre a estrutura da realidade e da percepção. As drogas, e Dick tomou bastantes nos anos 60, alteram a percepção, mas não o pressuposto de que a realidade permanece inalterada, ao menos para quem não está sob o efeito da substância. As especulações de Dick procuram ir mais longe — e daí o maior à-vontade com um género como a ficção científica18 –, minando até mesmo as certezas que possuímos quanto ao estatuto da realidade. O trabalho sobre o espaço, configurado regularmente através daquilo a que chamámos «espaço alternativo», é uma tarefa essencial para que essa especulação se concretize sob a forma de narrativa.

Não será aqui possível determinar todas as estratégias — e respectivas intenções extra-narrativas — de modalização, seja do espaço num sentido mais global, seja do papel desse espaço alternativo na lógica da intriga. Ainda assim, vale a pena retomar uma perspectiva geral. Em K. Dick, o espaço alternativo é habitualmente o lugar de de uma utopia, de uma distopia, por vezes de uma falsa utopia ou ainda uma realidade paralela ou idiossincrática. Para cada uma destas modalidades19, comuns sempre que nos posicionamos no interior da ficção científica enquanto género, pode identificar-se um conjunto de «fundamentos», também eles mais ou menos constantes de novela para novela. Em The World Jones Made, por exemplo (apenas para que compreendamos como Dick joga com a combinatória à sua disposição), a intriga gira em torno de um fundamento político, a sociedade do «Relativismo» onde todas as doutrinas são igualmente válidas e é ilegal recorrer a qualquer forma de persuasão. Perante esta falsa utopia, os mutantes que colonizarão Vénus representam a esperança de estabelecer um outro tipo de organização social. Já em The Three Stigmata of Palmer Eldritch ou em Flow my Tears… o fundamento é meramente individual, sendo os espaços alternativos realidades idiossincráticas e alucinatórias, mesmo que estas alucinações possam ser colectivamente partilhadas. Dos anos 70 em diante, o fundamento será predominantemente teológico (ainda que com tons políticos), como o provam Deus Irae, Radio Free Albemuth, VALIS e The Divine Invasion.

Se tivermos ainda em conta que qualquer dos mais conhecidos clichés característicos do género (viagens interplanetárias ou interestelares, viagens no tempo, uso de gadgets tecnológicos) serve a Dick como dispositivo para introduzir e justificar a entrada nesses espaços alternativos — seria imperdoável subtrair a esta lista o já mencionado uso de drogas, uma das suas marcas mais pessoais –, e que tais meios de passagem podem concretizar-se voluntária ou involuntariamente, o número de combinações aumenta de modo considerável: nem mesmo a totalidade das novelas as esgota.

A leitura cruzada de The Unteleported Man e de Lies, Inc., que encetámos acima, demonstra na perfeição o quanto Philip K. Dick faz do espaço da narrativa uma verdadeira arena para um dos seus objectivos dilectos: «tirar o tapete de debaixo dos pés» do leitor. Quanto mais ambíguo é o estatuto de cada um dos locais que descreve mais se dissemina a «desfocagem» entre espaços, isto é, a suspeita de que todos e cada um dos locais podem ser alternativos — no limite, os limites são abalados, e com eles também aquele que tomamos como o mais intacto e intocável, o que separa a realidade da ficção.

 

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[Nota: Nas obras de Dick, optou-se por apresentar a sua data de composição, e não a da primeira edição]

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Notas

1 «The two basic topics that fascinate me are “What is reality?” and “What constitutes the authentic human being?”» (Philip K. Dick, 1978b, in Lawrence Sutin (org.), 1989, p. 260).

2 O que não quer dizer que não se contem ensaios entre aquilo que escreveu. Um exemplo é o texto de onde foi retirada a citação da nota anterior, comunicação oral escrita em 1978 que nunca chegou a ser apresentada.

3 Talvez se possa dizer o inverso quando nos colocamos na perspectiva de quem escreve. É isso que procura argumentar Bruce Gillespie (1990), quando afirma que, enquanto nas poucas obras mainstream Dick era forçado a «take the ordinary world as a given», em contrapartida «it was very easy for Philip Dick to write successful science fiction», pois «In the science fiction novels, Philip Dick would put into his words his feeling that there is something generally wrong with the world.»

4 José Manuel Mota, 1995.

5 Não se creia com esta aproximação que estamos a confundir a fantasy com o conto maravilhoso, e muito menos a assimilar qualquer deles à categoria do fantástico. O conto maravilhoso tem uma origem oral, sendo portanto pré-moderno; o fantástico (cf. Tzvetan Todorov, 1970) é muito mais um modo (e muito abrangente enquanto tal) do que um género específico, sendo as suas mais notáveis concretizações produto de uma cultura simultaneamente escrita e moderna; a fantasy é de novo um género, ainda que de contornos muito mais complexos do que o conto popular, e alimenta-se de uma espécie de retorno ao mito de forma tão pouco inocente e tão permeada pela paródia — num sentido lato, como é usado por Linda Huthcheon em A Theory of Parody (1985) — a toda uma tradição que o precedeu que não é de todo descabido considerá-la fruto de um certo pós-modernismo estético. Um exemplo óbvio é Tolkien, que queria dar aos ingleses uma mitologia que lhes faltava. Cf. também Brian Attebery, 1992.

6 Naturalmente, esse processo de exclusão é de modo geral impossível para todos os espaços, pois tal permitiria, por simples eliminação, chegar ao «real». Duas novelas de Dick onde o processo de eliminação é bem sucedido, ambas dos anos 50, são Eye in the Sky (1955a), talvez a primeira onde surgem múltiplas realidades idiossincráticas, ainda que no final sucumbam à realidade comum, e Time out of Joint (1958), onde a falsa realidade é desmascarada e a verdadeira se desvela.

7 Corruptela de Ahura Mazda.

8 Time out of Joint (1958), traduzido em português como O Homem mais Importante do Mundo.

9 Uma entre outras possíveis excepções é The Man who Japed (1955b), mas mesmo aí a aquisição de competências surge de modo involuntário, como «efeito secundário» de uma viagem forçada ao espaço alternativo.

10 Socorremo-nos, entre outras fontes, de «The Tangled History of The Unteleported Man», redigido por Patrick Clark com comentários de Andrew Butler, disponível em http://www.philipkdickfans.com/literary-criticism/essays/the-tangled-history-of-the-unteleported-man/, e ao posfácio à edição de 2004 de Lies, Inc., da autoria de Paul Williams (Clark e Butler, s/d; Williams, 2004).

11 I. e., um livro com dois textos e duas capas, rodadas entre si 180º. «The Unteleported Man» partilha a edição com «The Mind Monsters», de Howard L. Cory.

12 Respectivamente, The Divine Invasion (1980) e The Transmigration of Timothy Archer (1981) — completas — e The Owl in Daylight — alguns esboços.

13 Ainda que hoje em dia a parte mais difícil da tarefa de reconstituição seja adquirir a edição da Berkley, uma vez que as páginas perdidas podem ser encontradas em http://www.philipkdickfans.com/pkdweb/TUMpages.htm [Página entretanto eliminada].

14 Andrew Butler, 2000, pp. 50-51 e 67-68.

15 Esta última hipótese torna-se particularmente plausível na versão mais tardia, Lies, Inc.

16 Dispensamos uma descrição deste diálogo, em particular de uma passagem onde o cefalópode oferece a Rachmael ben Applebaum um livro que contém toda a história, passada e futura, de Whale’s Mouth, pois tal só agravaria a compreensão do essencial.

17 Remetemos de novo para alguns dos conteúdos do site www.philipkdickfans.com (em particular David Hyde (s/d), que reproduz excertos relevantes da correspondência) bem como para a biografia de Lawrence Sutin, Divine Invasions (1991), dada a dificuldade em aceder aos cinco volumes editados com as cartas de Philip K. Dick.

18 Que aliás alguns autores e críticos preferem chamar, conservando a sigla SF, «speculative fiction». É o caso de Brian Aldiss (cf. em particular, a sua história do género em Brian Aldiss e David Wingrove, Trillion Year Spree, 1986. Billion Year Spree é uma versão anterior, apenas da autoria de Aldiss, datada de 1964).

19 Seria ainda necessário, por uma exigência de exaustividade, referir as raras vezes em que se trata tão simplesmente de um lugar físico sem qualquer conotação utópica ou distópica, e ainda destrinçar, na categoria da realidade idiossincrática, o «mundo tumular», como bem aponta Katherine Hayles (1999), que se destaca pela regularidade com que aparece, em particular nas novelas dos anos 60. Simplificamos, por motivos óbvios.

 

© Jorge Martins Rosa

Texto: 22/Set/04

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